23.7.03

A verdade sobre os «neo-conservadores». É altura de começarmos a perceber o que está a passar-se no mundo.

Com o 11 de Setembro, o povo americano ficou em estado de choque, uma reacção compreensível em qualquer circunstância, mas ainda mais num país que, desde a independência, nunca fora atacado no seu próprio território. À luz do que se sabia então (e do que se sabe hoje) o ataque contra o Afeganistão foi inteiramente justificado.

A partir de então, porém, o mundo foi surpreendido com a retórica agressiva do presidente Bush e de parte da sua entourage. «Eixo do mal», «quem não está por nós está contra nós», «guerra global contra o terrorismo», «estados pária» - lembram-se?

Sabe-se hoje que o ataque ao Iraque foi proposto por Rumsfeld, Cheney e Wolfowitz logo no dia a seguir ao 11 de Setembro. Essa pequena mas influente clique, habitualmente denominada de «neo-conservadora», aproveitou-se do estado de espírito da opinião pública e da hesitação das outras facções políticas, tanto republicanas como conservadoras e, efectivamente, tomou as rédeas do poder.

Ora o caso é que esses neo-conservadores não têm nada de conservador. O conservadorismo assenta em pontos de vista muito respeitáveis, seja qual for a nossa simpatia pessoal por eles. Os conservadores sublinham que as instituições sociais que estão na base da civilização custam muito a edificar e pouco a destruir, pelo que deveríamos pensar muitas vezes antes de nos pormos a fazer experiências de engenharia social. Assim, mesmo quando reconhecem a existência de injustiças, os conservadores apelam à moderação dos instintos reformadores com o argumento de que pode ser pior a emenda que o soneto. E invocam em defesa do seu argumento os múltiplos exemplos de activismo político-social que mais não fizeram do que provocar o caos e o retrocesso civilizacional.

Isto não tem a nada a ver com as ideias dos tais neo-conservadores, cujo programa consiste numa radical transformação da ordem social vigente, tanto internacional, como nacional. Os neo-conservadores são, na verdade, tanto pela sua doutrina como pela sua prática revolucionários de extrema-direita. Se chocar a comparação com Hitler, pensem antes em Carl Schmitt ou Martin Heidegger.

Eles estão insatisfeitos, profundamente insatisfeitos, com o ordenamento político mundial, alegando que ele não protege adequadamente as democracias contra o terrorismo internacional. As Nações Unidas, em vez de serem um agente capaz de liderar essa luta, só servem para entorpecer a iniciativa do mundo livre. A partir daqui, o argumento começou progressivamente a embrulhar-se, na medida em que o mundo livre é na realidade identificado com os Estados Unidos e o interesse da humanidade com o ponto de vista particular dos Estados Unidos sobre o assunto. Sob a sua forma mais actual e depurada, a doutrina resume-se a uma ideia muito simples: a política externa americana não deve ser condicionada por quaisquer outros interesses ou opiniões, nem sequer os dos seus aliados. Nessa medida, os Estados Unidos não se submetem ao veredicto de nenhuma instância internacional, seja ela a ONU ou o Tribunal Penal Internacional.

Um verdadeiro conservador pode reconhecer que o direito internacional é algo muito frágil, dado não ser respaldado por nenhum poder de facto capaz de impô-lo pela força. Todavia, em vez de se regozijar com esse facto, esforça-se por preservar os equilíbrios existentes e por consolidar as instituições existentes. Não assim os neo-conservadores, que se propoem alegremente arruinar e demolir a escassa ordem internacional existente.

Os neo-conservadores insinuam mais ou menos abertamente que a emergência do terrorismo internacional, tal como se manifestou no ataque às torres gémeas, abalou fundamentalmente os alicerces da sociedade ocidental em geral, e da americana em paricular. Para usar uma terminologia conhecida, eles inferem daí que não é possível, nas condições, presentes, o capitalismo num só país, pelo que é necessário exportar a democracia e impor uma transformação do poder à escala mundial pela via revolucionária. Esta direita é, numa palavra, revolucionária e internacionalista.

Não se deve acreditar, porém, que este movimento esteja disposto a confinar-se à esfera internacional. Nos Estados Unidos, sempre com o pretexto da luta contra o terrorismo, os direitos e garantias dos cidadãos foram, na teoria e na prática, seriamente condicionados. O caso mais visível é, naturalmente, o dos prisioneiros da Al-Qaeda internados em Guantanamo há mais de um ano sem assistência jurídica ou humanitária.

Não perca as cenas dos próximos capítulos.

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