31.8.03

Não posso calar-me por mais tempo. Farto de ouvir reformadores e pedagogos incitarem permanentemente os jovens a lerem mais livros, não posso calar por mais tempo a minha indignação.

Também eu fui, em tempos longínquos, um jovem despreocupado e feliz, que contemplava a vida com optimismo. Desde que comecei a ler, porém, nunca mais a minha cabeça teve descanso.

Aqueles que exortam os jovens a entregarem-se à leitura, das suas uma: ou são mal intencionados, ou nunca leram verdadeiramente eles próprios, e por isso desconhecem os terríveis malefícios desse vício. A decisão de ler não pode ser tomada de ânimo leve. Quantos e quantos não enveredaram por essa via convencidos de serem suficientemente fortes para manterem o controlo sobre si mesmos, para posteriormente mergulharem, progressivamente, na mais negra abjecção!

Desconhece-se, ainda hoje, quantas vidas promissoras foram destruídas pelos livros, quantas famílias se desfizeram, quantas nações se arruinaram. Os jovens mergulham com inocência na leitura de um livro, comvencidos de que se trata apenas de um simples divertimento como outro qualquer - ir à praia ou à discoteca, por exemplo. Nada disso! Atrás de um livro vem outro, e outro, e outro...

A origem do problema resulta de os livros serem muito mais aliciantes do que a vida. Daí jovens frustrados e infelizes, alienados pela falta de valores da sociedade contemporânea, sentirem-se tentados a trocar a segunda pelos primeiros. E quem poderá censurá-los? Uma vez iniciado, trata-se de um caminho sem regresso. Para os leitores, a vida não é senão uma sequência de livros, contra vontade interrompida aqui e além por breves intervalos destinados a assegurar a sua sobrevivência, tais como comer e dormir. Já os ouviram falar sobre si? Pois não é verdade que, para a quase totalidade deles, não é possível mencionarem este ou aquele episódio da sua vida sem referi-la a este ou àquele trecho deste ou daquele autor?

A triste mas indiscutível verdade sobre este flagelo cuja gravidade não foi ainda compreendida é que, para um verdadeiro leitor, para um leitor que verdadeiramente se preze, de nada vale ler um livro se não puder lê-los todos. Por isso, um leitor não pode ser um cidadão produtivo e responsável. No trabalho, está ausente e é incapaz de cumprir as suas tarefas em diligência, porque não lhe sai da cabeça aquele diálogo que teve que interromper para ir para o escritório. Na família, isola-se dos seus parentes no seu quarto, não colabora nas tarefas domésticas, não vem para a mesa a horas, não ajuda a mudar as fraldas, chega a faltar ao funeral do avô porque não consegue pousar o livro, a revista, o jornal, o catálogo ou o folheto quando o chamam.

O leitor é, não se duvide, um ser anti-social. Já foi proposto abolir os livros, mas isso não seria solução, porque, nesse caso, os infelizes afectados por este mal dedicar-se-íam a ler os letreiros nas ruas, os bilhetes de avião, as instruções de operação do DVD ou, pior ainda, os blogues da internet.

Não, meus amigos, este problema não se resolve com leis ou meras medidas repressivas. Do que nos precisamos é de uma reforma das mentalidades.

29.8.03

Maquiavel fotógrafo. Uma leitura recente de dois relatos de Maquiavel (a vida de Castruccio Castracani e a descrição dos feitos sanguinários do Duque Valentino, mais conhecido como César Bórgia) confrontou-me de novo com a típica incomodidade que tão amiúde aflige os seus leitores.

Mais ainda do que n’O Príncipe, é nestes relatos objectivos, frios e distanciados, onde ele descreve com tranquila minúcia e cruel detalhe, como se nada fosse, os crimes hediondos de personagens que, pela simples saliência que lhes é concedida, de algum modo aparecem como exemplares não se sabe bem de quê, que somos inevitavelmente levados a questionar-nos sobre os verdadeiros propósitos de Maquiavel.

Desde há séculos que duas correntes principais se formaram. De um lado, os que vêem em Maquiavel o cínico imoral para o qual a política não passa da continuação da guerra por outros meios, o teorizador do princípio de que os fins justificam os meios, o mestre e inspirador de todos os tiranos. Do outro, os que argumentam ter ele apenas procurado mostrar aos oprimidos como a política verdadeiramente é, despida das diáfanas vestes da ideologia que justificam as acções dos poderosos em nome do bem, da moral ou da vontade divina. Por outras palavras, Maquiavel tirano contra Maquiavel republicano.

Maquiavel deixa todo o trabalho ético para o leitor. Quanto a ele, limita-se a passar-nos a insustentável responsabilidade de tirarmos as nossas próprias conclusões e de vivermos com elas como bem nos aprouver. Exige-nos que sejamos talvez mais livres do que estamos preparados para ser. É, por isso, o autor moderno por excelência

Maquiavel, precursor da arte fotográfica, talvez pudesse ser essa a conclusão apropriada deste comentário.
O esplendor de Portugal. Pergunta-se Paulo Varela Gomes porque é o património artístico português tão clara e abissalmente inferior ao espanhol, uma evidência que eu, como ele, dou por indiscutível.

Há uma explicação fundamental, a meu ver também inquestionável, mas que a forma como a história do nosso país é usualmente ensinada tende a obscurecer: o território hoje chamado Portugal sempre foi muito mais atrasado do que aqueles que compõem as Espanhas. Creio que isso já era flagrante no tempo do Império Romano e, mais tarde, durante a presença muçulmana. Se quisermos ir mais atrás, o Noroeste peninsular foi, a par das Ilhas Britânicas e da Escandinávia, o último local onde a agricultura chegou, ainda em plena pré-história.

Há razões geográficas para isso. A Europa mediterrânica foi durante milénios o centro da civilização por estas bandas do mundo. Ora a Espanha é no essencial um país mediterrânico, e Portugal não. Um indício importante: vários imperadores romanos foram nados e criados na Hispânia do lado de lá; nenhum na do lado de cá.

Com a Idade Média, o centro da Europa deslocou-se para o Norte à medida que as florestas foram sendo desbravadas e transformadas em terrenos de cultivo. Daí o crescimento demográfico e a crescente importância económica da actual Alemanha. Mas Portugal é uma região completamente excêntrica em relação às novas rotas comerciais que ligaram a Europa do Sul à do Norte e que fizeram a prosperidade da França.

Outro equívoco frequente consiste em supor que houve uma altura da sua história, a época dos Descobrimentos, em que Portugal esteve entre os países mais desenvolvidos. Creio que isto é falso: todos os relatos da época mostram que Portugal continuou a ser, em comparação com os restantes países europeus, uma região extremamente pobre. A verdade é que, a dada altura, choveu aqui dinheiro; mas, na ausência de diversas condições, o país não se desenvolveu muito. Isto consciente de que este ponto mereceria ser muito elaborado mas, para já, tenho que ficar por aqui.

Os portugueses da minha geração têm muito a ideia de que só nas últimas décadas é que a Espanha se destacou de Portugal porque, quando íam lá nos anos cinquenta, viam, sobretudo na Andaluzia e em Castela, uma extraordinária miséria ainda resultante do retrocesso provocado pela Guerra Civil. Tratava-se de uma ilusão de óptica. A Espanha sempre foi muito mais rica do que Portugal. E, embora seja chato dizer-se isto, a verdade é que a cultura normalmente vai atrás do dinheiro.

Outra coisa que se ignora é que, ao longo de toda a história, a época em que mais próximos estivemos da Espanha é, precisamente a actualidade. Mas, ainda assim, a grande distância, sobretudo no que respeita à riqueza acumulada.

Este progresso relativo ocorreu possivelmente porque nunca como agora nos integrámos tanto no movimento geral económico e cultural da Espanha e da Europa em geral, o que só nos pode fazer bem. Ainda assim, alguns factores estruturais continuam a puxar-nos para trás. O mais importante é a nossa baixíssima taxa de urbanização em comparação com a Espanha, de que resultam a estreiteza de vistas e a mesquinhez tipicamente portuguesas. Só este assunto daria para um post bem longo.

O atraso nacional em tudo o resto (cultura, ciência, artes, enfim, civilização no seu verdadeiro sentido) deriva daqui. Esta explicação tem, a meu ver, duas vantagens: por um lado, não induz desespero; por outro, não recomenda resignação.

28.8.03

O deserto vermelho. Queixam-se alguns de que a recente vaga de incêndios vai desertificar o país. Enganam-se, porque não se pode desertificar o que já é deserto, e a verdade é que a esmagadora maioria da área ardida corresponde a território já praticamente inabitado, onde a floresta cresce selvagem ou os proprietários absentistas de pequenas parcelas, que mal sabem onde elas se localizam e se limitam a vender a madeira em pé ao madeireiro que lhes faça a melhor proposta, residem a dezenas ou centenas de quilómetros do local. Entretanto, perdidas no gigantesco vazio em que mais de metade do país se tornou, algumas povoações de idosos isolados foram varridas do mapa. Mas elas eram já a triste excepção, e não a regra.

Fundamentalmente, o país ardeu exactamente porque uma boa metade dele é já hoje inabitado. A paisagem humana portuguesa está confinada a dois estreitos corredores, um que vai de Viana do Castelo a Setúbal, o outro no litoral algarvio (este com menos de dez quilómetros de largura), ligados entre si e a Espanha por uma rede de auto-estradas e vias rápidas que funcionam como uma espécie de viadutos que sobrevoam o país a baixa altitude.
Traição à pátria. Pelo menos dois portugueses contribuiram activamente para a vitória da Lazio sobre o Benfica, ainda por cima a troco de dinheiro. Estou a referir-me a Fernando Couto e a Sérgio Conceição.

No entanto, a indignação contra eles não se compara à fúria provocada pelo apoio declarado de alguns adeptos do Porto à chegada dos italianos ao aeroporto de Sá Carneiro.

Uns fizeram-no por dinheiro, outros por convicção; mas, pelos vistos, o dinheiro é mais respeitável do que a convicção.

27.8.03

O direito à palavra. Nas televisões dos países civilizados, o direito à palavra é severamente racionado, de tal forma que até as maiores figuras políticas têm que se despachar depressa a dizer o que têm para dizer.

Nos debates presidenciais americanos, cada candidato tem dois minutinhos para responder a cada pergunta, vinte segundos antes do fim do tempo acende-se uma luzinha e quando ele acaba, o microfone é desligado.

Mais a Sul, nas últimas eleições presidenciais brasileiras, vimos mais um exemplo de debate civilizadíssimo e vivíssimo, com os tempos de Lula e Serra bem controlados e sem gritarias nem interrupções.

Aqui, em Portugal, temos outro modelo. Nos debates abertos, mete-se o máximo de gente a gritar ao mesmo tempo, de sorte que mesmo o telespectador mais interessado em política foge rapidamente para um programa de maior nível cultural, como, por exemplo, uma transmissão de futebol.

A outra face desta moeda é a entrega de uma hora de emissão a um chico esperto que monopoliza esse período de tempo a falar do que lhe vem à cabeça mas sempre, sempre, sobre coisas de que não entende um mínimo. Em suma, conversa da treta servida em doses cavalares. Estou a referir-me, evidentemente, àquelas estranhíssimas (para qualquer pessoa bem formada) intervenções de Marcelo na TVI aos domingos.

O que isto indicia é que, ao contrário do que se passa em sociedades razoavelmente democráticas, não existe entre nós uma competição livre e saudável pelo espaço televisivo: ele é adjudicado mediante atribuição de um alvará a alguém amigo por razões obscuras que só os próprios entendem. Chama-se a isto «ajuste directo», uma expressão que oculta mais do que revela.

Mas não é esse, ainda hoje, diga-se o que se disser, o princípio básico organizador da nossa vida económica e social?
Tempos de antena. É giro, não é? A SIC decidiu contratar Santana Lopes para comentar os acontecimentos da semana ao domingo em concorrência directa com Marcelo Rebelo (não sei se não falta aqui um «l»)de Sousa na TVI. Sócrates ficou solteiro na RTP, que decidiu rever o modelo, e a revisão deu nisto: convidou cinco comentadores, um de cada um dos partidos com representação parlamentar.

De maneira que, partindo da hipótese benévola de que cada um dos canais generalistas tem um rating igual, os tempos de antena ficaram assim divididos: 72,6% para o PSD, 6,6% para cada um dos restantes partidos. Ou, de outra maneira, 79,2% para o governo, as sobras para a oposição.

Em resumo, os canais privados criaram uma situação de favor para o governo (a troco sabe-se lá de quê), o canal público deu uma ajudinha.

Mas, pergunta-se, que haveria a RTP de fazer? A única coisa decente: convidar comentadores independentes em vez de políticos no activo, uma prática abstrusa só possível num país de débeis tradições democráticas como o nosso. Também isso poderia ser uma atitude exemplar de serviço público.

26.8.03

Meditações inconclusivas sobre o terrorismo. Todos os problemas admitem uma solução simples, rápida e errada. Creio que foi H. L. Mencken quem disse isto, mas a frase veio-me agora à mente a propósito do terrorismo, um dos muitos problemas para os quais todos os dias são propostas soluções simples, rápidas e erradas.

A verdade é que, ou se sabe pouco sobre o terrorismo, ou quem sabe muito fala pouco, ou é pouco escutado, o que vem a dar no mesmo. Entretanto, aqui ficam algumas reflexões razoavelmente desgarradas sobre o tema, de quem não sabe muito sobre ele mas está disponível para pensá-lo seriamente.

1. Para os adeptos do «fogo neles», o terrorismo é um fenómeno que se situa para além do compreensível, para além do racional, logo aquém do humano. Por isso, os terroristas não devem, naturalmente, beneficiar da protecção que a lei concede aos outros cidadãos, aos cidadãos «como nós». Que apodreçam, pois, num lugar longínquo qualquer, como Guantanamo, por exemplo.

2. Também acreditam essas almas simples que o terrorismo só pode ser combatido por formas extremas de violência legítima ou legitimada. Ora, embora a renúncia à violência para combater o terrorismo seja tolice, em última análise o terrorismo não é vencido pela violência, antes se alimenta dela, porque a sua lógica é a do martírio.

3. O terrorismo não admite explicações simples, como aquelas que o atribuem à pobreza ou à opressão política. O terrorismo é um fenómeno humano, demasiado humano, e por isso mergulha as suas raízes em frustrações de origens obscuras que podem exprimir-se de várias maneiras. A esperança está em conseguir que elas sejam sublimadas de formas relativamente benignas quer para o indivíduo, quer para a sociedade.

4. O terrorismo aparece e desaparece de forma aparentemente inesperada ao longo da história. Entre a segunda metade do século XIX e a I Guerra Mundial, a Europa foi abalada por uma vaga incontrolável de brutais atentados terroristas de inspiração anarquista que atingiu quase todos os países e que, em Portugal, vitimou o rei D. Carlos. Depois de 1918, porém, o terrorismo político regrediu rapidamente nesta parte do mundo, e isto apesar de a violência política ter crescido até desembocar, em vários países, em guerras civis. Embora Auschwitz não seja preferível ao terrorismo anarquista, é, sem dúvida, diferente.

5. O terrorismo aparece frequentemente associado a situações insuportáveis de humilhação e desespero. Se houver humilhação, mas não houver desespero, pode haver violência política, mas de outro tipo, ou seja claramente orientada para fins de tomada do poder e não com intuitos meramente excitativos. Foi isso, suponho, que aconteceu na Europa ao terminar a I Guerra Mundial.

6. Uma das características distintivas do terrorismo moderno (modernidade esta que remonta ao século XIX) parece-me ser o seu carácter marcadamente propagandístico, particularidade que é exacerbada na era da televisão globalizada ou, como diria o outro, na era da aldeia global. Os atentados terroristas têm assegurada uma espantosa cobertura mediática, tanto mais vasta quanto mais sanguinários e espectaculares eles forem. Praticar um atentado é uma forma de marcar uma posição, custe o que custar e custe a quem custar. Paradoxalmente, a própria «guerra contra o terrorismo» aumenta ainda mais a eficácia comunicacional do terrorismo.

7. A doutrina explícita das Brigadas Vermelhas italianas dos anos 70 pode resumir-se assim: O povo está anestesiado pela democracia burguesa e, como tal, não podemos esperar que se revolte contra ela. Então o nosso objectivo é, através das nossas «acções exemplares» semear o terror e dar trunfos às forças mais reaccionárias para que, aproveitando-se de um ambiente de crescente crispação política, instaurem um regime autoritário, de preferência fascista. Como com o fascismo a opressão se intensificará, o povo será finalmente obrigado a revoltar-se e a tomar o poder. O argumento é suficientemente imbecil para não merecer uma refutação cuidada. Mas a primeira parte tem algum fundamento: onde reina o medo, estão reunidas as condições para o triunfo da autoridade incontrolada. Iremos fazer a vontade a Bin-Laden? (Partindo do princípio de que ele existe, o que é inteiramente irrelevante.)

25.8.03

Lapso de memória. Escreve Helena Neves no Público de sábado que, para o bem-estar da nossa sociedade, contribuiram mais homens como Henry Ford do que Karl Marx. Esquece-se de que, se não fosse gente como Marx, as mulheres não escreveriam artigos de opinião nos jornais, nem, aliás, poderiam tirar a carta para conduzirem os automóveis fabricados pelo sr. Henry Ford.

Estes comentadores muito frescos e bem pensantes parecem carecer totalmente de um módico de perspectiva histórica, a ponto de suporem que os direitos individuais foram um dia postos à venda nas lojas como os carros.

22.8.03

A deriva continental. O mais preocupante no actual afastamento entre a Europa e os Estados Unidos é que ambas as regiões tendem a ficar piores por causa disso, porque cada uma delas pode ser uma boa influência para a outra.

O espírito democrático é muito mais forte nos Estados Unidos do que na Europa. Se nalgum sítio existe algo que possa ser apelidado de democracia popular, é lá. Do lado de cá do Atlântico apenas a Escandinávia se aproxima; o resto do Continente continua muito susceptível ao autoritarismo. Vários países, entre os quais Portugal, só não regridem para regimes musculados porque as condições internacionais não são favoráveis.

Em contrapartida, é flagrante a despreocupação da América com os pobres, seja dentro de portas, seja no estrangeiro. De tal modo que não se importam de gastar com a gigantesca população prisional (8% da população já esteve presa) aquilo que poupam em subsídios de desemprego, serviço nacional de saúde ou habitação social. Embora a gente tenha dificuldade em explicar exactamente o que é o modelo social europeu, uma breve excursão pelos bairros pobres das grandes cidades americanas torna tudo muito mais claro.

Este assunto dava pano para mangas, mas a ideia central é esta: com a América e a Europa de costas voltadas, e cada uma delas a orgulhar-se do que tem de pior, as coisas só podem degradar-se nos dois sítios.
Causas económicas do apagão. O que há de comum entre o escândalo da Enron e o apagão que afectou o noroeste dos EUA e o Canadá há uma semana? Em ambos os casos, gestores de topo de empresas privadas inflacionaram a rentabilidade de curto prazo à custa da deterioração acelerada dos activos.

No primeiro caso, fizeram-no recorrendo a manobras desonestas e ilegais; no segundo, limitaram-se a seguir aquilo que muitos consideram ser os princípios da boa gestão, ou seja, cortando custos a tordo e a direito, sem querer saber das consequências de longo prazo. No primeiro caso, conduziram a empresa à ruína e os trabalhadores ao desemprego; no segundo, as empresas responsáveis não foram, para já afectadas, e os custos foram suportados pelos consumidores e por centenas de milhares de empresas que necessitam da electricidade para operar.

Estamos perante um sintoma de um mal mais vasto. Como explica John Kay num luminoso artigo publicado esta semana no Financial Times, trata-se de financiar o presente à custa da deterioração do futuro. Moral da história: qualquer idiota é capaz de reduzir custos destruindo a capacidade de prestar um serviço de qualidade aos cidadãos.

Em mercados bem formados e competitivos, a concorrência encarrega-se de penalizar estes comportamentos desviantes. Todavia, quando essa concorrência não existe ou é fraca, como sucede na maioria dos serviços públicos (electricidade, claro, mas também água, gás, caminhos de ferro, até certo ponto telecomunicações), não existe ainda nenhuma sanção real para os prevaricadores.

Uma ideia: obrigar os responsáveis pelo apagão a pagarem os prejuízos causados a todas as empresas e particulares. Mas, com esse ónus, algum privado estaria interessado em gerir uma empresa de electricidade?

21.8.03

Os mais pobres dos pobres. As principais vítimas da recente vaga de incêndios foram, por regra, populações isoladas, maioritariamente idosas, economicamente ligadas a uma agricultura de subsistência em vias de extinção, cujos parcos haveres, casas, culturas, animais e apetrechos, foram inteiramente consumidos pelas chamas.

Estes fogos aceleraram a decadência deste modos de vida e de produção já ameaçados e condenados prazo. Pode-se dizer, numa perspectiva friamente economicista, que os incêndios apena executaram uma sentença que já fora ditada há longo tempo. São estes os vencidos da modernização económica do país.

Trata-se, porém, de pessoas indefesas, cuja capacidade de reacção e recuperação é, por razões financeiras e culturais, praticamente nula. E o mais certo é que, passada a momentânea excitação das televisões, daqui a uns meses ninguém vai sequer querer saber o que elas vão comer.

Não é surpreendente, para não dizer chocante, que o Partido Socialista e a oposição em geral não tenham nada a dizer e a propor sobre isto?

20.8.03

De que lado estamos? Como era de esperar, as coisas no Iraque continuam a complicar-se. Agora, há aqui um ponto que ninguém pode ignorar: quer queiramos quer não, os países de tradição democrática liberal e todas as pessoas que partilham esses valores estão necessariamente, nesta guerra, do lado dos EUA. Sei que isto é difícil de aceitar, para quem, como eu, discorda do modo como a invasão do Iraque foi lançada e entende os propósitos que estiveram na sua origem, mas é mesmo assim.

O desencadeamento da guerra foi uma coisa absolutamente estúpida exactamente porque era previsível que a América estava a arrastar-nos a todos para este atoleiro com propósitos, no mínimo, nada claro. Todavia, não faz sentido continuar a discutir infindavelmente o desencadeamento da guerra. Uma vez que Saddam foi derrubado (e isso é indiscutivemente uma coisa boa) ninguém de bom senso tem o direito de dizer que cabe aos americanos desenvencilharem-se desta enrascada porque, agora, a instauração no Iraque de algo o mais parecido possível com uma democracia representativa é a única saída aceitável.

Parecem-me pouco perspicazes aqueles que dizem que não se percebe porque atacaram os terroristas a sede da ONU, se os inimigos são os americanos. Para a gente que fez aquilo, não há diferença nenhuma de fundo entre a ONU e os americanos. Será que não compreendem isso?

Pode ser mais uma razão para odiarmos Bush, que de pateta se está a transformar cada vez mais em patético, mas este problema também é nosso. A única reivindicação razoável, portanto, é que a ONU substitua progressivamente no terreno a administração militar americana e organize a transição para um governo legítimo iraquiano.
Rentabilidade mínima garantida. No decurso das últimas décadas, desmantelámos as nossas protecções alfandegárias, liberalizámos os movimentos de capitais, reprivatizámos a banca, as telecomunicações, as empresas de serviço público e a indústria pesada, flexibilizámos o mercado de trabalho, congelámos o salário mínimo.

Além disso, recebemos da União Europeia verbas astronómicas para melhorar as infraestruturas, modernizar a agricultura e as pescas e formar os trabalhadores portugueses.

O resultado deveria ter sido um boom da produtividade e uma melhoria dramática da competitividade da economia portuguesa no seu conjunto.

Embora tenha havido certamente muitas melhorias, esse boom não aconteceu. Porquê?

Do ponto de vista económico, o lucro é o prémio do risco. Mas é claro que correr riscos é, por assim dizer, muito arriscado. Bem melhor é viver dos rendimentos, se isso for possível. Viver dos rendimentos pode querer dizer, por exemplo, aproveitar a posse ou acesso privilegiado a certos recursos para assegurar uma rentabilidade anormalmente elevada para os capitais empregues. Em teoria económica, chama-se a isso explorar rendas de situação.

Durante os anos 80, os grupos económicos portugueses, compulsivamente afastados dos sectores económicos que tradicionalemnte dominavam, foram obrigados a procurar novas áreas de actuação. Com o início das reprivatizações, porém, as suas atenções concentraram-se em actividades que, embora tradicionais, não só ofereciam boas perspectivas de rentabilidade como prometiam um rápido alargamento da sua escala que, como se sabe é muito importante para competir nos mercados internacionais.

O lado negativo de tudo isto é que, por via de regra, as actividades que o Estado largou são, pela sua natureza, pouco ou nada expostas à concorrência. Além disso, situam-se quase inteiramente na área dos bens transaccionáveis.

Consequência: a capacidade de investimento dos grandes grupos financeiros portugueses dirigiu-se para actividades que não são determinantes para o desenvolvimento económico hoje em dia, porque: não empregam gente qualificada, não implicam investigação e desenvolvimento, não são inovadoras, não valorizam nem o design nem o marketing e não exportam. Quando deixou de ser possível reinvestirem os capitais em Portugal, foram para o Brasil, para a Polónia ou para a China à procura de oportunidades semelhantes.

Tudo isto é normal nas circunstâncias em que ocorreu. Não há que culpar os gestores e as empresas por terem seguido os caminhos que seguiram.

O problema é que os poderes públicos, em vez de encararem de frente esta realidade e de se oporem activamente às suas consequências mais nefastas, só contribuíram para agravar ainda mais a situação. O Estado continua a achar que tem o direito de decidir quem é rico e quem é pobre, quem tem acesso ao poder económico e quem é dele excluído.

As privatizações seguiram em Portugal uma lógica semelhante à da venda dos bens da coroa no século XIX. Abundam os sinais de nepotismo em múltiplos processos, e o mais grave nem é que o Estado tenha sido prejudicado financeiramente, mas que as empresas não tenham ficado nas mãos dos mais capazes.

Pode-se argumentar, e não deixa de ser verdade, que, nesta matéria, o guterrismo não foi mais do que a continuação do cavaquismo por outros meios. Mas é indiscutível que os governos socialistas elevaram a promiscuidade entre o poder económico e o poder político a novos patamares, só comparáveis à situação que o país conheceu nos anos anteriores a 1974.

A teoria dominante é que, sendo os grupos económicos a face mais poderosa do capitalismo português, temos forçosamente que apoiá-los se quisermos preservar centros de decisão nacionais. O grande mestre desta confusa doutrina foi o ex-ministro Pina Moura, que à pala dela montou as maiores trapalhadas.

Um exemplo curioso é o da área da energia. No próprio momento em que os consumidores e as empresas se preparavam para beneficiar de uma mínimo de concorrência, o ministro teve a genial ideia de eliminá-la fundindo num único grupo as diversas empresas a operar no sector.

Infelizmente, porém, há fortes indícios de que o novo governo só veio acrescentar novas confusões às que já existiam, baralhando e tornando a dar na área da energia sem uma discussão aprofundada das consequências das decisões tomadas.

Anadamos todos muito entretidos a discutir o rendimento mínimo garantido, mas o nosso grande problema é a rentabilidade mínima garantida a que muitas das nossas mais importantes empresas se habituaram.

18.8.03

O apagão da liderança. O apagão confirmou mais uma vez o extraordinário espírito de iniciativa e de auto-organização dos nova-iorquinos.

Ao mesmo tempo, comprovou também a endémica falta de liderança de que padece a América. O mayor da cidade limitou-se a afirmar que não se tratava de um acto de terrorismo e só muito tarde fez declarações mais substanciais. Hilary Clinton, senadora do Estado, debitou lugares comuns a partir do telemóvel do carro, ao final da tarde, a caminho de casa. O governador do Estado anunciou que faria declarações depois da meia-noite. O esforçado George Bush mencionou vagamente, muitas horas depois do início da ocorrência que estaria a ser investigada a hipótese da queda de um raio sobre a central de Nyagara, mas que, ao certo, nada se sabia.

A CNN deu um show de informção medíocre. Um único repórter na rua entrevistava algumas pessoas. Câmaras plantadas no alto dos prédios mostravam ruas e pontes apinhadas de gente. Nenhuma imagem de qualquer outra cidade norte-americana ou canadiana atingida para além de Nova Iorque. Informação esclarecedora ou reportagem viva – praticamente nada.

Ocorreu-me mais uma vez que os americanos vivem obcecados pela liderança individual, que incansavelmente glorificam no seu cinema, precisamente porque não a têm em abundância. Basta olhar para a lista dos presidentes americanos para ver que, desde Roosevelt, nenhum tem verdadeira estatura de líder – não é preciso, porque a máquina funciona bem à mesma. A força da América está no colectivo, no planeamento e na organização.

Na Rússia, curiosamente, é ao contrário. Falam o tempo todo da alma russa e da força do povo russo, mas a verdade é que, como colectivo, pouco valem. Em contrapartida, o país exibe, mesmo nas piores épocas, uma pleiade impressionante de grandes individualidades.

1.8.03

Ir de férias é uma vitória frágil e provisória da liberdade sobre a necessidade. Portanto...
Para que serve o Presidente? Por razões de oportunidade historicamente determinadas pelo conflito que marcou a primeira metade dos anos 80 entre Ramalho Eanes e os partidos do bloco central, a função do Presidente da República foi algo esvaziada de conteúdo nas sucessivas revisões constitucionais.

Hoje, toda a gente constata a fragilidade da posição do Presidente da República, situação que contrasta frontalmente com as expectativas inerentes à sua eleição por sufrágio directo. Esta situação só pode degradar-se em futuras eleições presidenciais, à medida que os portugueses se forem convencendo da redundância da função presidencial.

Nenhuma outra república tem, que eu saiba, um sistema como o nosso, que, não sendo nem carne nem peixe, só consegue desprestigar a República. A prazo, das duas uma: ou a eleição do Presidente passa a ser feita indirectamente através da Assembleia da República; ou as funções do Presidente são substancialmente alargadas. Desconheço qual será a resolução final deste dilema. Mas estou certo que resultará em larga medida da forma como o actual sistema for, na prática, utilizado.

Acredito que o Presidente da República tem ainda hoje suficientes poderes para influenciar mais decisivamente a vida política, como o prova a interpretação que, mau grado o que antes dissera, Mário Soares efectivamente fez desses poderes. Tem, por exemplo, o poder de fazer a vida negra ao Governo, o que não é pouco.

Lamentavelmente, a presidência de Sampaio revelou-se, neste aspecto, um retrocesso em relação a Soares.

Estou convencido, porém, de que no dia em que finalmente tivermos um Presidente da República de direita, iremos todos descobrir que, afinal, ele tem imensos poderes de que não estávamos conscientes.
Então a auditoria? A única coisa estranha neste conflito entre Portas e os militares é que o ministro ainda não tenha, a exemplo do que tem sido a prática corrente dos governantes do seu partido nas áreas que tutelam, lançado um inquérito, uma sindicância ou uma auditoria ao Exército.
Ainda a guerra. Uma guerra preventiva com uma justificação retroactiva é uma contradição nos termos, não é? Pois é.

Mas o facto é que os mesmíssimos que, há poucos meses, se precipitaram a sustentar que o fundamento da guerra era tão evidente que não haveria tempo a perder se quisessemos evitar riscos maiores, dedicam-se agora com tranquila persistência a ensaiar argumentos alternativos àquele que antes consideravam inquestionáveis. A ver se algum pega.

Como alguém já afirmou, tudo isto é demasiado estúpido para ser verdade. E é isso que assusta.
Música, maestro! Segundo Beaumarchais, «quando não se tem nada para dizer, pode-se dizê-lo por música.» Como não sabe cantar, José Magalhães di-lo no tom mais grandiloquente de que é capaz, recorrendo a abundantes superlativos e a adjectivos tonitruantes.
Agora calhou-me a mim. Cada vez é mais certo: um sujeito vai ao médico cheio de saúde e volta de lá carregado de doenças. Estatisticamente, a esmagadora maioria das pessoas morre pouco depois de ser vista por um médico. Isto dá que pensar.

Agora um desses seres de bata branca que velam pela nossa saúde ordenou-me uma dieta estrita. Como o meu espírito aventureiro aprecia novas experiências, considerei de início com simpatia os encantos desse novo estilo de vida que, convenhamos, tem o seu chique.

Eis senão quando, lendo com a atenção as instruções entregues pelo médico, constato que, proibição disto, proibição daquilo, estou praticamente a pão e água...