20.8.03

Rentabilidade mínima garantida. No decurso das últimas décadas, desmantelámos as nossas protecções alfandegárias, liberalizámos os movimentos de capitais, reprivatizámos a banca, as telecomunicações, as empresas de serviço público e a indústria pesada, flexibilizámos o mercado de trabalho, congelámos o salário mínimo.

Além disso, recebemos da União Europeia verbas astronómicas para melhorar as infraestruturas, modernizar a agricultura e as pescas e formar os trabalhadores portugueses.

O resultado deveria ter sido um boom da produtividade e uma melhoria dramática da competitividade da economia portuguesa no seu conjunto.

Embora tenha havido certamente muitas melhorias, esse boom não aconteceu. Porquê?

Do ponto de vista económico, o lucro é o prémio do risco. Mas é claro que correr riscos é, por assim dizer, muito arriscado. Bem melhor é viver dos rendimentos, se isso for possível. Viver dos rendimentos pode querer dizer, por exemplo, aproveitar a posse ou acesso privilegiado a certos recursos para assegurar uma rentabilidade anormalmente elevada para os capitais empregues. Em teoria económica, chama-se a isso explorar rendas de situação.

Durante os anos 80, os grupos económicos portugueses, compulsivamente afastados dos sectores económicos que tradicionalemnte dominavam, foram obrigados a procurar novas áreas de actuação. Com o início das reprivatizações, porém, as suas atenções concentraram-se em actividades que, embora tradicionais, não só ofereciam boas perspectivas de rentabilidade como prometiam um rápido alargamento da sua escala que, como se sabe é muito importante para competir nos mercados internacionais.

O lado negativo de tudo isto é que, por via de regra, as actividades que o Estado largou são, pela sua natureza, pouco ou nada expostas à concorrência. Além disso, situam-se quase inteiramente na área dos bens transaccionáveis.

Consequência: a capacidade de investimento dos grandes grupos financeiros portugueses dirigiu-se para actividades que não são determinantes para o desenvolvimento económico hoje em dia, porque: não empregam gente qualificada, não implicam investigação e desenvolvimento, não são inovadoras, não valorizam nem o design nem o marketing e não exportam. Quando deixou de ser possível reinvestirem os capitais em Portugal, foram para o Brasil, para a Polónia ou para a China à procura de oportunidades semelhantes.

Tudo isto é normal nas circunstâncias em que ocorreu. Não há que culpar os gestores e as empresas por terem seguido os caminhos que seguiram.

O problema é que os poderes públicos, em vez de encararem de frente esta realidade e de se oporem activamente às suas consequências mais nefastas, só contribuíram para agravar ainda mais a situação. O Estado continua a achar que tem o direito de decidir quem é rico e quem é pobre, quem tem acesso ao poder económico e quem é dele excluído.

As privatizações seguiram em Portugal uma lógica semelhante à da venda dos bens da coroa no século XIX. Abundam os sinais de nepotismo em múltiplos processos, e o mais grave nem é que o Estado tenha sido prejudicado financeiramente, mas que as empresas não tenham ficado nas mãos dos mais capazes.

Pode-se argumentar, e não deixa de ser verdade, que, nesta matéria, o guterrismo não foi mais do que a continuação do cavaquismo por outros meios. Mas é indiscutível que os governos socialistas elevaram a promiscuidade entre o poder económico e o poder político a novos patamares, só comparáveis à situação que o país conheceu nos anos anteriores a 1974.

A teoria dominante é que, sendo os grupos económicos a face mais poderosa do capitalismo português, temos forçosamente que apoiá-los se quisermos preservar centros de decisão nacionais. O grande mestre desta confusa doutrina foi o ex-ministro Pina Moura, que à pala dela montou as maiores trapalhadas.

Um exemplo curioso é o da área da energia. No próprio momento em que os consumidores e as empresas se preparavam para beneficiar de uma mínimo de concorrência, o ministro teve a genial ideia de eliminá-la fundindo num único grupo as diversas empresas a operar no sector.

Infelizmente, porém, há fortes indícios de que o novo governo só veio acrescentar novas confusões às que já existiam, baralhando e tornando a dar na área da energia sem uma discussão aprofundada das consequências das decisões tomadas.

Anadamos todos muito entretidos a discutir o rendimento mínimo garantido, mas o nosso grande problema é a rentabilidade mínima garantida a que muitas das nossas mais importantes empresas se habituaram.

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