30.9.03

Peço explicações. O que é que o facto de ser possível um sujeito fabricar uma bomba nuclear na garagem tem a ver com a guerra contra o terrorismo? Pacheco Pereira insinua ontem no Abrupto que tem tudo. Eu, embora entenda onde ele quer chegar, não consigo acompanhar o raciocício.

Em primeiro lugar, gostaria de recordar que o 11 de Setembro foi levado a cabo com armas rudimentares. O que aí se provou, pois, foi que o terrorismo pode ser altamente eficaz recorrendo apenas a fisgas, facas de bolso e tesouras.

Depois, a possibilidade de proliferação descontrolada de armas de destruição massiva em consequência da facilidade da sua construção levanta sobretudo o problema do seu uso por indivíduos isolados ou por pequenos grupos de fanáticos activistas, e não especialmente por estados párias. Os estados, mesmo os dirigidos por tresloucados, podem com mais facilidade ser controlados ou ameaçados do que grupos informais virtualmente invisíveis e com grande facilidade de movimentação.

Portanto, nenhuma guerra convencional contra o «Eixo do Mal» pode enfrentar com êxito os problemas decorrentes da democratização das tecnologias do assassinato em massa nem, acredito, alguma vez foi esse o seu propósito.

Resta, portanto, como verdade inquestionável, que os comportamentos anti-sociais de sectores extremistas poderão assumir formas cada vez mais perigosas para a sociedade mundial. Que fazer?

Uma solução consiste em instituir sistemas de policiamento preventivo muito mais rigorosos do que aqueles que actualmente existem. Isso pode significar, por exemplo, a fiscalização sistemática dos movimentos de todos e quaisquer indivíduos cujos comportamentos possam ser considerados desviantes. Mas isso implicaria a instauração de verdadeiros estados policiais que nem eu nem Pacheco Pereira estaremos preparados para aceitar.

Há alguns anos, Peter Sloterdijk alvitrou numa conferência (tradução francesa: Règres pour le parc humain, Mille et une Nuits, 2000) que a solução poderá estar na utilização da engenharia genética para reprogramar o ser humano por forma a eliminar certas taras congénitas de origem biológica. Estas propostas desencadearam prontamente um indignado clamor de protestos, tanto à esquerda como à direita.

Concluindo, eu não tenho uma solução para propor, mas parece-me evidente que tão pouco a tem Pacheco Pereira.

27.9.03

Agarra se puderes. Aqui há uns três anos, ouvi um miúdo dizer numa reportagem televisiva que o maior sonho da sua vida era ir a Lamego, de que a aldeia onde residia distava uns dez quilómetros.

Excepto para este miúdo, ir a Lamego não é uma coisa particularmente excitante. Daí que, não havendo cinema nem centro comercial para passar o tempo, algumas figuras gradas da terra tenham decidido compensar essas falhas proporcionando aos amigos mais chegados um passeio de helicóptero.

Estou certo de que nunca lhes passara pela cabeça que houvesse nisso algo de mal. Todos os exemplos que vêm de cima mostram-lhes que, afinal, o Estado não é meu, nem é teu: é de quem o apanhar.
Outra vez os pilotos israelitas. Como era de prever, o meu post sobre os pilotos israelitas suscitou reacções iradas. Um leitor, em particular, deu-se ao trabalho de me dirigir uma crítica cujo argumento mais sólido era a suspeita de que, se calhar, eu sou judeu.

É capaz de não andar longe da verdade. Mas, já agora, dou-lhe o desgosto de o informar de que provavelmente ele também será, visto que, segundo afirma Steve Olson no seu magnífico livro Mapping Human History, a mistura de raças nesta vasta zona geográfica que circunda o Mediterrâneo foi tão intensa ao longo dos últimos milénios que não deverá hoje haver ninguém que não tenha sangue hebreu (mas também árabe, obviamente).

Falando mais a sério, como o assunto merece, peço que notem, em primeiro lugar, que eu falei da superioridade moral de Israel, não dos israelitas. E é assim porque, apesar do crescimento da vaga fundamentalista dentro do país, suportada pelo peso dos ortodoxos e pelo militarismo de alguns sectores, Israel é um estado que assenta as suas raízes na tolerância política e ideológica. Se se afastar delas, desaparecerá.

O outro ponto que eu gostaria de destacar é que vivemos num mundo extraordinariamente complexo. Por muito que queiram convencer-nos do contrário, as soluções simplistas não levam a lado nenhum, excepto talvez à escalada da violência insensata a que presente assistimos. Acredito que o bem e o mal existem, mas também acredito que, na maior parte das situações e na maior parte do tempo, as coisas não são tão claras assim.

Compreendo que quem está directamente envolvido nos conflitos não consiga ter a lucidez de entender ou sequer escutar os argumentos da outra parte, ou seja, de reconhecer a humanidade essencial do outro lado. Tenho muito mais dificuldade em entender o sectarismo de quem, apesar de separado do conflito israelo-palestiniano por milhares de quilómetros, e sobretudo por uma vivência livre das terríveis pressões psicológicas que ambos os lados sofrem no seu quotidiano, parece ainda assim mais empenhado em lançar chamas para a fogueira do que em apoiar todos os gestos, por frágeis e isoladas que eles sejam, que apontam no bom sentido.

25.9.03

Instituições. O Expresso é uma instituição no mesmo sentido em que o é uma senhora de meia idade. Já conheceu melhores dias, mas, por pudor ou piedade, ninguém tem coragem de lho dizer.
Adivinha. Se o Conselheiro Acácio dirigisse um jornal, qual seria ele? - O Expresso, claro está.
O outro roteiro para a paz. O governo de Sharon pode achar que eles são um cancro que urge extirpar, mas a verdade é que, paradoxalmente, atitudes como a dos 27 pilotos israelitas condenando raids sobre habitações que ameaçam civis inocentes põem em relevo a superioridade moral de Israel neste conflito.

Já alguém viu uma coisa igual do outro lado? Possivelmente não é porque não haja quem sinta da mesma maneira, mas porque seriam trucidados se ousassem exprimir em público a sua opinião.

Enquanto houver gente assim, de um lado e do outro, a esperança não estará definitivamente morta.
O Dr. Graça e o Sr. Moura. Por um lado, é um poeta de méritos reconhecidos, um homem de letras distinto, um gentleman com elevado sentido cívico. Por outro lado, polemiza com inigualável sectarismo, destempera à mínima provocação, recorre a linguagem de carroceiro, perora com grande à vontade sobre assuntos de que nada entende.

Agora inventou esta história do terrorismo incendiário que, segundo ele, visa derrubar o governo por meios subversivos; e, em vez de deixar cair no esquecimento o lapso infeliz, insiste e volta à carga.

Qualquer pessoa minimamente informada explicar-lhe-ia que o fogo posto tem um peso relativamente pequeno enquanto causa de incêndios, e que a grande maioria se prende com negligência e causas naturais. Chamar-lhe-ia ainda a atenção para o facto de que este ano, embora a área ardida tenha aumentado muito, de facto até houve menos incêndios.

Mas o Sr. Moura não quer saber de nada disto. Se o sr. primeiro-ministro lançou esta cruzada contra os incendiários para se limpar de reponsabilidades, a função dele, enquanto propagandista do governo, não é pôr em causa o chefe, mas apenas reunir argumentos para a causa, não importa quão disparatados eles sejam.

Ele argumenta, por exemplo, que a Judiciária até já prendeu 91 pessoas, o que, para o sr. Moura, basta para considerá-las culpadas. Sem notar que o envolvimento de uma parte da Judiciária numa manobra de desinformação do governo, particularmente notório nas suas intervenções televisivas durante o mês de Agosto, exigiria, ele próprio, um esclarecimento.

Enfim, este é o terrorismo a que temos direito, e o Sr. Moura o seu delirante profeta. Vamos esperar que, passado o efeito da poção maligna, tenhamos em breve de volta o bom Dr. Graça que todos tanto apreciamos.
Paris-Bagdade. Só uma pequena nota para dizer que, mais uma vez, a posição francesa em relação ao Iraque é completamente insustentável.

Que sentido faz exigir que se marque imediatamente uma data para a entrega do poder a um governo iraquiano quando ninguém pode com seriedade prever quando haverá condições para que isso aconteça?

Só os tolos se deliciam com as dificuldades que as americanos estão a experimentar no Iraque. Uma coisa é considerar que a invasão foi errada e perigosa; outra, bem diferente, é esperar tranquilamente que os americanos sejam derrotados e que Saddam, ou alguém pior, tome o poder.

É verdade que não devemos acorrer pressurosos para ajudar Bush a pagar as suas aventuras militares. Mas a solução alternativa é passar o controlo político da situação para a ONU, e não deixar os iraquianos entregues à sua sorte, que é como quem diz: à guerra civil.
Descoberta. Quando vamos de viagem e nos esquecemos de o guardar na mala, descobrimos com surpresa que o melhor amigo do homem é o creme de barbear.
Perguntar não ofende. Alguns jornalistas escrevem que, antes de ele chegar ao poder, não imaginavam que o primeiro-ministro se revelaria tão capaz. Será porque a mediocridade tem mais encanto vista de baixo?
Raio de comparação. Sabem aquelas mulheres que metem medo quando as vemos de manhã antes de se maquilharem? Alguns dos meus posts ficam assim quando não tenho tempo para lhes pôr um pouco de blush e pintar os lábios.
O céu é o limite. Não se sabe exactamente porquê, mas o facto em si está confirmadíssimo por estudos realizados em diversos momentos e lugares: em média, as pessoas mais altas ganham mais do que as mais baixas.

Assim, prevejo que, se os pais forem autorizados a escolher as características genéticas dos seus filhos, vamos assistir ao crescimento exponencial da espécie. Para quê tirar um MBA, se o importante é ser-se mais alto?

Prevejo também crescentes dificuldades para o tráfego aéreo.
Hoje é dia de bola. Aqui há uns anos, ao ser-me apresentado um administrador de uma grande empresa portuguesa, um amigo comum recomendou-me como sendo adepto do mesmo clube que ele.

Diz-me o sujeito: «Para falar verdade, eu nem gosto muito de futebol. Mas, como me sentia marginalizado às segundas-feiras quando toda a gente no escritório discutia os golos e as arbitragens da véspera, comecei a ir ao estádio com o meu filho, para ver se quebrava o isolamento».

O pobre homem, para não ser ostracizado pelos seus pares, tinha que submeter-se regularmente a um sacrifício ritual para ver se conseguia ser aceite pela tribo do futebol. Quem não aprecia o futebol nem é homem nem é nada. Pior: é objecto da desconfiança generalizada dos outros machos.

Durante muitos anos, acreditei haver na vida coisas mais importantes do que o futebol. Quando, finalmente, despertei do meu sono dogmático, vi claramente vista a profundidade do meu erro.

Hoje em dia, quando alguém afirma que não gosta de futebol, deduzo imediatamente que deve ter um parafuso a menos. Parafraseando a letra de um conhecido samba: «Quem não gosta da bola/ bom sujeito não é/ é ruim da cabeça/ ou doente do pé».

Só há uma coisa pior do que não gostar de futebol: não ser adepto de um clube de futebol. Um sujeito sem filiação clubística é um homem só, sem lealdades, um egoísta, um autista fechado sobre si mesmo. Homens assim, não duvidem, são perigosos.

O futebol é, para milhões de pessoas, o principal, senão mesmo o único, factor de de socialização. Se não fosse o futebol, de que falariam essas pessoas umas com as outras?.

A observação do “fenómeno desportivo” diz-nos praticamente tudo o que precisamos de saber sobre o estado do mundo. Por exemplo, quando começaram a aparecer em Portugal muitos jogadores russos, búlgaros, húngaros, sérvios e romenos, nós fomos obrigados a meditar sobre a derrocada do comunismo soviético. A bem dizer, nem é preciso ver os telejornais ou consultar jornais e revistas para saber o que se passa no planeta.

Mas, além disso, o futebol eleva-nos também às mais altas esferas do espírito, pois que, hoje, é através dele que as pessoas tomam contacto com as grandes questões do Universo, tais como o sentido da vida, o Bem e o Mal, etc. Uma leitura atenta dos jornais desportivos comprova-o sem margem para dúvidas.

Antigamente, dizia-se que o futebol era uma alienação. Essa tese foi mais uma vítima da queda do Muro de Berlim, visto que, se a alienação é um conceito com vestígios de marxismo, quem não gostar de futebol será forçosamente suspeito de estalinismo.

Assim, uma das consequências inesperadas da decadência do marxismo foi a proporcional elevação do estatuto do futebol enquanto actividade cultural. O intelectual da bola está hoje em toda a parte, nas colunas de opinião dos jornais de referência, nos debates televisivos, nas universidades ou, quem sabe, nas eleições presidenciais, caucionando desse modo com a sua benção esse inocente entretenimento popular.

Deve ser por isso que alguns eminentes bloguistas, pessoas usualmente sensatas e inteligentes, não só se desviam do seu caminho para escrever tolices sobre o último Porto-Benfica, como rapidamente perdem a compostura com assuntos de tão indiscutível relevância.

Eu percebo o sentimento clubista, e até o partilho, mas nunca comprei jornais desportivos, que só conheço do barbeiro, nem tenho usualmente paciência para conversas sobre futebol, não porque negue à partida que possam ser interessantes, mas porque os participantes daquelas a que tenho assistido percebem tanto do assunto como de cricket.

A paixão clubista, como qualquer forma de amor, tem de exprimir-se, compreendo-o bem, de formas ridículas. Se não fosse assim, não seria amor.

Mas convém não exagerar. E há sempre uma alternativa, quando todas as formas de expressão nos parecem inadequadas: seguir o conselho de Wittgenstein, segundo o qual o que não pode ser dito deve ser silenciado.

24.9.03

Confiança na justiça. A minha confiança na justiça portuguesa aumentou exponencialmente depois de ver o comportamento do Presidente da Relação de Lisboa, um cavalheiro de fina educação, em frente das câmaras da SIC. E como será quando a televisão não está a filmar?
Sem réstia de vergonha. É minha profunda convicção de que a oposição estudantil ao aumento das propinas é completamente injustificada. Se eu tivesse a esse respeito quaisquer dúvidas, e de facto já tive, bastar-me-ia escutar a inconsequente argumentação dos dirigentes do movimento para que elas prontamente se dissipassem.

A bem dizer, trata-se apenas de mais uma manifestação daquele despudorado egoísmo corporativo que em Portugal se exibe a todo o tempo sem freios na praça pública.

E não têm sequer vergonha de que as mães os vejam a fazer essas figuras?

23.9.03

Mais notícias. Segundo o FMI, o PIB per capita cresceu na União Europeia 18,3% desde 1995, contra 16,1% nos EUA.

Entre 1990 e 2002, a produtividade cresceu mais rapidamente na União Europeia do que nos EUA.

Em termos absolutos, a produtividade da Alemanha, da Holanda, da Irlanda, da França, da Bélgica e da Noruega é superior à americana.

Onde está, afinal, a tão alardeada superioridade económica americana? E que é feito da decadência europeia?
Última hora. Segundo a Wired deste mês, a corrida ao espaço terminou, e a vitória vai para a Europa, porque os seus lançamentos de satélites são mais económicos e mais fiáveis do que os americanos.
Para onde vai a economia americana? Hoje ocorreu-me escrever sobre um assunto de que, estranhamente, não se fala por cá.

O espectacular crescimento dos EUA durante a década de 90 não resultou, ao contrário do que se ouve dizer, da extraordinária eficiência da economia americana. Na verdade, foi o produto de uma peculiar conjugação de duas circunstâncias surpreendentes e irracionais: os consumidores e as empresas americanas entretiveram-se a gastar todo o dinheiro que podiam, enquanto o resto do mundo, convencido de que o milagre económico americano era real, se disponibilizou a financiar esse crescimento descontrolado do consumo e do investimento.

Assim, todo o mundo, países subdesenvolvidos incluídos, mobilizou-se para emprestar dinheiro aos EUA. Seria de esperar que os capitais se movimentassem dos países avançados para os atrasados, mas foi precisamente o contrário que aconteceu. Os pobres emprestaram a camisa aos ricos, razão mais do que suficiente para muita gente se aborrecer com o rumo dos acontecimentos.

Hoje em dia, os EUA são o maior importador de capitais do mundo, secando as fontes de investimento tradicionalmente dirigidas para os outros países (como o nosso, por exemplo). Mas que culpa têm os EUA de que os investidores apostem na economia americana?

A verdade é que este jogo só pode manter-se devido a duas circunstâncias. Em primeiro lugar, o governo americano, em vez de controlar a situação, agrava o problema reduzindo a carga fiscal sobre os mais ricos e multiplicando a dimensão do déficite federal até a um nível demencial. Em segundo lugar, os investidores institucionais, e principalmente os governos asiáticos continuam a mandar dinheiro para os EUA, aplicando-o designadamente em títulos da dívida pública.

Se se tratasse de qualquer outro país, o FMI já teria lançado um alerta pondo de sobreaviso os credores dos EUA; mas, assim, limita-se a assistir aos acontecimentos.

No ano passado já houve um esboço de reacção dos mercados internacionais que provocou uma rápida quebra da cotação do dólar. Desde então, porém, as coisas estabilizaram.

O que vai acontecer a seguir? Há dias, o economista Paul Krugman foi entrevistado sobre este e outros assuntos. Eis o que respondeu:

What happens if these foreign countries do stop buying U.S. bonds? Is this a real concern, or a tinfoil hat kind of thing? Oh, I don't think China is going to [stop buying U.S. bonds in order] to pressure us. You can just barely conceive of a situation where they're mad at us because we're keeping them from invading Taiwan or something, but more likely they just start to wonder if this is really a good place to be putting their money. So what happens is a plunge in the dollar when they decide to stop buying and start cashing in, and a spike in U.S. interest rates. But you might also get in a situation where the interest rates the government has to pay to roll over its debt become so high that you get an accelerating problem, which is what happened in Argentina. What happened was that suddenly no one would buy Argentine debt unless they paid a twenty something percent interest rate, and everybody says, but if they have to roll over their debt at a twenty percent interest rate, there's no way they can pay that back. So the whole thing grinds to a halt and the cash flow just dries up.

And do you think that's a serious possibility for the United States? Yeah, just take the numbers as they now look, and that's where it heads. And you might say, OK, we can easily handle it. U.S. taxes are 26 percent of GDP in the U.S., in Canada they're 38 percent of GDP. If you raise U.S. taxes to Canadian levels there's plenty of money to cope with all of this. But politically we've got a deadlock, and it's hard to imagine that happening. So you say, but this can't happen, this is America, and I guess my answer is, is it? Is this the same country that we had in 1970? I think we have a much more polarized political system, a much more polarized social climate. We certainly aren't the country of Franklin Roosevelt, and we're probably not the country of Richard Nixon either, so I think we have to take seriously the possibility that things won't work out this time...

Pelo sim, pelo não, apertem os cintos de segurança.

18.9.03

Vidas paralelas de Eisenstein e Riefenstahl. A morte de Leni Riefenstahl serviu de pretexto a José Manuel Fernandes para mais uma tentativa de demonstração da equivalência entre nazismo e comunismo, um tema crucial a que mais tarde ou mais cedo voltarei com o cuidado que merece.

Desta vez, o argumento aduzido a favor da tese foi a pretensa similitude entre os estatutos de Eisenstein e Leni Riefenstahl na sua relação com um poder tirânico. Não ignorando os conflitos que opuseram Eisenstein ao governo soviético, José Manuel Fernandes sugere que talvez Leni não tenha tido tempo para embirrar com Hitler. Comparar um facto com uma hipótese é um procedimento discutível, mas adiante.

Concordo inteiramente com Augusto Seabra quando ele escreve no Público que as dimensões artísticas das duas personagens não são comparáveis. Embora eu não seja nem um grande conhecedor, nem um grande admirador de Eisenstein, entendo que ele é um artista, ao passo que Leni Riefenstahl é uma mera propagandista, distinção que, pelos vistos, muita gente não alcança.

A propaganda, como a publicidade e outras artes a que os americanos certeiramente apelidam de comerciais incorporam sem dúvida valores estéticos e socorrem-se de meios de expressão semelhantes aos utilizados pela arte. Mas não se tornam arte por causa disso.

A arte tem uma dimensão essencialmente não utilitária que a impele a encarar o mundo como algo problemático. Daí ser ambivalente (ou mesmo polivalente) em relação aos seus objectos, não comunicar certezas, mas possibilidades ou perspectivas. A grande arte é aberta e não fechada. Não carreia certezas, suscita dúvidas. Não transmite mensagens, sugere e inspira ideias e sentimentos. Abre-se a uma pluralidade de interpretações e sentidos. Apela para a nossa inteligência e sensibilidade e não para a nossa submissão.

Agora olhem outra vez para os filmes de Leni Rifenstahl, comparem com os de Eisenstein, e digam lá se tenho ou não razão.
Ó McKinsey, explica tu! Na ausência de ideias próprias, o Governo optou por subcontratar a concepção das suas políticas sectoriais a empresas de consultoria.

Assim, proponho que, na próxima remodelação governamental, as pastas sejam assim distribuídas: Economia, McKinsey; Transportes e Comunicações, Accenture; Saúde, Roland Berger; Educação, PriceWaterhouse; Justiça, Novabase; Assuntos Sociais, ATKearney; Negócios Estrangeiros, Cap Gemini; Defesa, Rocha, Pirolito & Azevedo.

Poupava-se dinheiro em ministros e a Drª Ferreira Leite, a única verdadeiramente indispensável no Governo, agradeceria.

17.9.03

Gente fina é outra coisa. Depois de todo o alarido da nova maioria em torno das despesas incorridas pelo Estado português para assegurar o Euro 2004 e, particularmente, do dinheiro dado a clubes de futebol que mais não são senão empresas com fins lucrativos, esperar-se-ía, ao menos, algum pudor.

Mas eis que, com a maior tranquilidade e sem sombra de debate público, o Estado se prepara para abrir os cordões à bolsa para financiar em larga escala uma outra realização desportiva: a próxima Taça América, uma regata transoceânica de projecção mundial.

Como é hábito, prometem-se fantásticas receitas turísticas e mirabolantes benefícios nacionais para justificar o envolvimento do Estado em mais esta aventura.

Sublinha-se, porém, que as verbas envolvidas na criação de infraestruturas serão muito inferiores às dispendidas com a construção ou recuperação dos estádios para o Euro 2004.

Convém, porém, notar outras diferenças significativas entre os dois eventos.

O Euro 2004 envolve várias capitais de distrito; a Taça América, dois concelhos do distrito de Lisboa.

O Euro 2004 atrai a Portugal dezenas de milhares de pessoas; a Taça América, dezenas de pessoas.

O Euro 2004 será visto durante semanas por centenas de milhões de pessoas em todo o mundo; a Taça América, por um pequeno nicho de audiência.

O Euro 2004 interessa à grande maioria dos portugueses; as regatas oceânicas, a um punhado deles.

Finalmente, o Euro 2004 beneficia várias empresas; a Taça América, apenas uma.
Depressão. Tudo é deprimente no primeiro ensaio de flash-mob ocorrido em Portugal. Em primeiro lugar, o facto de ser convocado pelos jornais com quinze dias de antecedência. Em segundo lugar, a tentativa bacoca de organizar uma manifestação em frente da Assembleia «contra os políticos». Em terceiro lugar, a insólita presença de uma multidão de jornalistas e polícias, o povo a que de facto temos direito. Em quarto e último lugar, o facto de não aparecer ninguém, porque desconfio que essa ausência não se deve a boas razões, mas apenas a esta incapacidade de levantar o rabo da cadeira para fazer seja o que for que insidiosamente se instalou entre nós e que faz de Portugal o país mais entediante e entediado à face do planeta.
Semáforo. O tempo passa muito mais depressa quando se tenta aproveitar o sinal vermelho para escrever um post no Palmtop.

16.9.03

A Suécia e nós. Porque haveriam os suecos de votar «sim» ao euro? Para perderem o controlo de uma parte da sua política económica a troco de nada?

Porque o problema da Europa nos anos recentes é que cada vez mais poderes são transferidos para instâncias não controladas democraticamente. Isto é péssimo, porque corrói a democracia nos diversos países que integram a União e não institui em contrapartida nenhum poder legitimado pelo voto à escala europeia.

Quando as coisas dão para o torto e os governos são interpelados pelos cidadãos, eles limitam-se a responder: «Isso não é connosco... Foi decidido pela União Europeia».

Em países de fraca cultura democrática, como o nosso, vamos papando acriticamente esta marcha triunfal do «projecto europeu», de modo que, mesmo quando as políticas se revelam manifestamente erradas, como agora está a acontecer, continuamos a atribuir os nossos males ao fado e limitamo-nos a chorar porque o rigor das regras do Pacto de Estabilidade só se aplica a nós. Passa-nos desapercebida a relação entre a causa e o efeito.

Mas é natural que na Suécia, com outras tradições de responsabilização dos poderes políticos, as coisas não se passem com essa facilidade.

Para que fique claro, não sou contra a Europa nem contra o Euro; bem pelo contrário, simpatizo com a ideia federalista. Penso que a via que tem vindo a ser seguida leva a sequestrar o poder de decisão dos cidadãos em proveito de poderes obscuros e não controlados. Se a França e a Alemanha são tratadas com especial benevolência quando violam as regras acordadas, não será exactamente porque o poder fiscalizador não tem que responder senão... aos governos da França e da Alemanha?

Este regime de marchas forçadas parece especialmente concebido para alienar um número cada vez maior de cidadãos da coisa pública e, por conseguinte, para desacreditar a democracia. O resultado está à vista.

A solução só pode vir da instituição de um verdadeiro poder federal europeu que resulte do voto popular. Àqueles que afirmam que, nesse contexto, 7 milhões de eleitores portugueses não contam nada, eu recordo que Bush ganhou as eleições por algumas centenas de votos na Florida (não discuto agora a legitimidade da contagem), e que os votos da Madeira têm frequentemente sido decisivos na política portuguesa.
Senão vão todos para a fossa dos crocodilos. Leio no DN de Sábado que José Luís Arnaut, ministro de coisa nenhuma, «exige que a selecção nacional tenha bons resultados desportivos de forma a compensar o esforço que o Governo e os cidadãos em geral estão a fazer para o Europeu de 2004». Embora não se trate de uma citação directa do ministro, o tom «ácido» (segundo o Público), que eu próprio confirmei ao ouvir as suas palavras na rádio, não deixa dúvidas: Arnaut lançou de facto um aviso ou uma ameaça nada velada à selecção.

Que sentido faz isto? Sabemos que, quando os jogos não corriam de feição para a selecção iraquiana, um dos filhos de Saddam prendia e torturava os jogadores. Por cá, já não estamos nessa fase, mas, pelos vistos, subsiste em alguns um caldo de cultura similar que podemos assim caracterizar: a) as vitórias e derrotas do futebol mexem com a honra da nação; b) o governo é o supremo guardião da honra da pátria; c) se os jogadores mancham o orgulho nacional, o governo tem o direito e o dever de puni-los pelos meios ao seu alcance.

Como os jogadores só vão à selecção porque querem e são na sua maioria milionários, estas ameaças, talvez eficazes quando dirigidas aos trabalhadores das fábricas que o ministro possui, deixam-nos completamente indiferentes.

Assim, este estilo serve apenas para revelar a pobreza da classe empresarial e política que temos. Como empresários, são absolutamente incapazes de motivar trabalhadores qualificados, mesmo quando se trata de meros futebolistas. Como políticos, limitam-se a manobras de baixa política destinadas a impressionar os parolos.

Porque o raciocínio do ministro Arnaut só pode ser este: se ganharmos o Euro 2004, o mérito será dele, que puxou umas orelhas a tempo; se perdermos, ninguém pode dizer que ele não avisou.
Sobre a promoção internacional do Euro 2004. Anunciam os jornais do fim de semana que a campanha interna e externa para a promoção Euro 2004 vai custar 3 milhões de euros, ou seja, 600 mil contos.

Seiscentos mil contos dá para fazer uma campanha fortíssima em Portugal, uma campanha jeitosinha em Espanha ou uma campanha invisível na Europa. Parece muito dinheiro, mas não é.

Se bem me recordo, o orçamento publicitário para a Expo 98 de Lisboa ascendeu a cerca de 8 milhões de contos. Em contrapartida, o da Expo 92 de Sevilha montou a 80 milhões de contos.

Estamos aqui, mais uma vez, confrontados com uma realidade que custa muito a entrar nas nossas cabeças: o país não tem dimensão nem, por conseguinte, recursos para fazer investimentos publicitários internacionais que se vejam. É claro que a raiz desta teimosia cega em persistir num caminho que custa dinheiro mas não nos traz nem fama nem glória reside na tentativa de nos colocarmos no mesmo patamar de visibilidade e projecção que a Espanha, um propósito antecipadamente votado ao fracasso, tal a diferença de escala entre os dois países.

Também segundo os jornais do fim de semana, a campanha internacional vai decorer nos meses de Outubro e Novembro, nomeadamente com anúncios duplos nas páginas das revistas Time, Newsweek, The Economist, Business Week e International Herald Tribune. Seria muito interessante ter acesso à avaliação deste plano de media mas, na sua ausência, dá vontade de perguntar duas coisas: a) Porque é que o plano privilegia publicações americanas (4 em 5), embora se subentenda que o anúncio só sairá nas edições distribuidas na Europa?; b) Que espécie de afinidade existe entre os leitores destas publicações e as pessoas que se interessam por futebol?; c) Porque é que não foram antes seleccionadas publicações desportivas?

Estas perguntas fazem especialmente sentido porque a campanha (cujo slogan é «In Portugal, extra time is always the best part of the game») é orientada para persuadir os adeptos do futebol que tencionam deslocar-se a Portugal a ficarem mais uns dias para conhecerem o país. Naturalmente, estas pessoas lêem mais La Marca ou L’Équipe do que The Economist.

Sucede, porém, que as minhas perguntas são retóricas, porque eu já sei a resposta. Muito provavelmente, a agência de meios que preparou o plano pensou nas mesmas coisas que eu, e noutras do estilo. Pura e simplesmente, o orçamento que lhes foi indicado não era suficiente para fazer um bom plano de meios.

Temos, assim, mais uma campanha internacional que vai ter um impacto negligenciável. É lícito concluir, portanto, que só se faz esta campanha para, cá dentro, os portugueses acharem que se está a fazer alguma coisa. Não fosse assim, teríamos toda a imprensa e toda a oposição a gritarem que o governo não faz nada para promover o Euro 2004.

Ora eu acho que tudo isto se baseia numa grande incompreensão do que é o Euro 2004 e das vantagens que tem para o país. A própria ideia de que é preciso investir para promover o Euro 2004 é absurda, dado que esse evento se promove a si próprio. Tal como, em 2001 e 2002, todos em Portugal sabíamos que a nossa selecção lutava para se qualificar para o Mundial da Coreia e do Japão, lá fora já toda a gente sabe que as respectivas selecções procuram apurar-se para o Euro de Portugal. Quem tiver dúvidas pode tirá-las ligando de vez em quando o canal Eurosport.

Acresce que esta publicidade grátis (mais correcto seria chamar-lhe publicity) se prolonga ao longo de horas e horas durante meses e meses em dezenas de países. É preciso ter consciência de que os menos de 30 milhões de contos que o Estado português gastou no Euro 2004 não seriam suficientes para pagar o espaço publicitário de que o país assim beneficia.

Neste contexto, que valor têm os seiscentos mil contos que o ICEP vai gastar?

Uma resposta possível é que as meras menções a Portugal apenas afectam a notoriedade do país, ao passo que a publicidade permite trabalhar a sua imagem. Mas alguém acredita seriamente que uma campanha que só é vista por uma parte ínfima do público alvo, e ainda por cima tão poucas vezes, tem algum poder real para afectar positivamente a imagem do país? Claramente, uma campanha assim encontra-se abaixo do patamar mínimo de visibilidade.

Pode o Euro 2004 atrair muitos turistas a Portugal? Claro que sim, mas o efeito principal não resultará do acréscimo de receitas das pessoas que virão assistir a jogos e que poderão ficar mais uns dias. Esses serão, no máximo, umas dezenas de milhar, número insignificante num país que é visitado anualmente por milhões de estrangeiros.

O principal efeito do Euro resultará da maior visibilidade de que o país beneficiará durante um período de tempo concentrado. Essa visibilidade traduzir-se-á em maior saliência, e levará mais pessoas a colocaram Portugal entre os possíveis destinos de férias. É um bocadinho como pôr o país numa montra, que é o modo essencial como a publicidade funciona.

Pode portanto o governo estar descansado que o Euro 2004 vai aumentar significativamente as receitas turísticas, sem que para isso precise de fazer seja o que for.

11.9.03

Um testemunho. No restaurante, um homem que eu só conhecia de subir às vezes com ele no elevador do prédio onde ambos trabalhávamos virou-se para trás, com um telemóvel colado ao ouvido, e disse-nos: «Em Nova Iorque, um avião chocou com um arranha céus».

Na minha mesa, o rumo da conversa mudou logo para agarrar este novo tema. Como era possível uma coisa destas? Eu lembrei-me de que, há uns sessenta anos, um avião chocou com o Empire State Building e disse-o. Acrescentei que o choque não afectou a estrutura do edifício e só morreu o piloto.

A conversa tomou outro rumo. Depois do almoço, por volta das duas, subimos para o escritório. Ao entrar, encontrámos uma pequena multidão na sala de reuniões a acompanhar as notícias na televisão. Fomos espreitar e vimos a imagem de um avião a chocar com uma torre. «Isto não pode ser acidente. O céu está limpo e, mesmo que o avião tivesse uma avaria, conseguiria provavelmente evitar a torre».

Fui para uma sala de reuniões mais pequena ao lado. Ao fim de uns minutos interromperam-nos para dizer que um segundo avião chocara com a outra torre. Fomos ver. Falava-se de um atentado terrorista. O Zé disse: «Isto é coisa da Mossad. Só os israelitas têm a ganhar com isto». Fiquei a olhar para ele, e pensei: «Isto vai mesmo ficar feio». Fui para o meu computador e tentei obter mais informações pela internet, mas estava tudo bloqueado. Chega a notícia de um terceiro ataque, este sobre o Pentágono. Agora não havia dúvidas sobre o que estava a passar-se. Falava-se de um quarto avião que estaria a dirigir-se para a Casa Branca.

Nas Torres em chamas havia pessoas a atirarem-se para a rua. Mais algum tempo, e uma das torres desaba, criando pânico e confusão nas ruas circundantes. Depois cai a Segunda. Daí a bocado começou a falar-se da Al-Qaeda e de Bin Laden.

As imagens dos aviões a chocar com os edifícios são transmitidas e retransmitidas ad nauseam, de todos os ângulos possíveis, até todos as termos gravadas na retina. Os comentaristas começam então a tomar conta do espaço mediático.

Diz-se que o mundo nunca mais vai ser igual. Duvido. Acredito mais que as grandes transformações resultam de pequenos acontecimentos a que, na altura, ninguém prestou muita atenção. Mas não tenho dúvidas de que muita coisa vai acontecer.

Decido começar a escrever um diário, para registar minuciosamente os acontecimentos e as minhas reacções a eles. Mas não cumpro à risca esse propósito. Limito-me a tomar notas num pequeno bloco que trago sempre comigo, dando continuidade a um hábito que criei nos últimos três anos. A maior parte dos meus registos nem sequer são sobre política, escrevo sobre o que me vem à cabeça ou me faz pensar. Já este ano converti-me aos blogues que, correndo eu sempre o risco de ser lido por alguém, me impõem uma maior disciplina intelectual.

Impressiona-me a rapidez na identificação dos culpados, uma seita de maltrapilhos fanáticos que, acoitados nas montanhas do Afeganistão, o único país do mundo que não dispõe de um só quilómetro de via férrea, prometem submeter o mundo à vontade do Profeta. Inaugura-se uma era de desorientação dos espíritos que ninguém sabe onde poderá levar.

A grande mudança operada no 11 de Setembro parece-me ser esta: antes dessa data, todos nós tínhamos um sentido razoavelmente apurado da realidade. Sabíamos que certas coisas acontecem nos filmes, mas não na vida real. Distinguíamos (ou julgávamos distinguir) sem qualquer dificuldade os efeitos especiais da coisa verdadeira. Há coisas, evidentemente, que só acontecem nos filmes do James Bond.

Agora, depois daqueles espantosas cenas dos aviões a chocarem com as torres, já não sabemos o que pensar. Tudo pode ser verdade, e tudo pode também ser mentira. A começar logo por essa inenarrável personagem que dá pelo nome de Bin Laden, e que, apesar de parecer saída de um daqueles filmes beras de guerra, ninguém põe em dúvida que exista, apesar de nos aparecer sempre sob a forma de umas gravações de video de má qualidade com uma banda sonora para esquecer. Cá para mim, é uma personagem tão real como o Rato Mickey. Além disso, se existe, deve ser parecido com aquele infeliz que costumava passar os dias no Rossio, armado de uma megafone, a anunciar a iminência do fim do mundo e da vinda do Salvador. Como pode um cromo desses arrastar gente atrás de si?

Nas televisões, vemos uns quantos árabes (não mais de uma dúzia) a dançar de alegria. O comentador assegura-nos que essas imagens traduzem o sentimento de todo o mundo muçulmano. A interpretação delirante vai muito para além do que as imagens objectivamente revelam, mas está armado o cenário para a paranóia anti-islâmica.

Bush declara guerra contra os cobardes ataques terroristas e acrescenta que quem não está contra a América está contra ela. Um jornalista americano é despedido por duvidar que o adjectivo «cobarde» seja o mais adequado para qualificar os ataques, dado que os terroristas que íam a bordo sacrificaram as suas vidas.

Todo o mundo está em estado de emergência. Militares e polícias ocupam todos os lugares estratégicos e, antes de mais, os aeroportos. Já vi isto num filme, aliás mauzito, mais uma prova de que, agora sim, a realidade imita a ficção. Temem-se novos ataques terroristas, que não se confirmam, mas entretanto começa a cena do envio de antrax pelo correio, episódio até nunca esclarecido que lança o pânico nos EUA.

O Governo americano lança um ultimato aos taliban para que entreguem Bin Ladem, senão...

Eu deveria ter viajado para os EUA poucas semanas depois do 11 de Setembro. Mas isso dependia de terceiros que, após uma atitude inicial muito macha, recuaram à última hora e adiaram tudo. Acabei por partir só no dia 1 de Março de 2002.

Quando o avião se aproximou de Nova Iorque, toda a gente espreitou pelas janelas tentando ver o que, precisamente, já não podia ser visto. Reencontrei em Nova Iorque a energia habitual que caracteriza a cidade, embora as pessoas que lá vivem notem que há mais relutância em frequentar os locais públicos. Aqui e além, em locais de maior passagem de peões como, por exemplo, as estações de comboios, encontravam-se comoventes memoriais a familiares e amigos, pequenos altares que perpetuam uma memória. As pessoas continuavam a parar aí para ver, ler e meditar. Tenho que confessar uma coisa horrível: se os terroristas tivessem optado antes por atacar outra cidade (Los Angeles, por exemplo) eu não me sentiria tão chocado. Mas quem faz mal a Nova Iorque faz-me mal a mim.

Dois dias depois apanhei o comboio Amtrak para Washington, que me abriu os olhos para uma América que eu ainda não vira, a dos bairros miseráveis dos subúrbios das grandes cidades que bordejam a linha do comboio. Casas meio arruinadas, ruas esburacadas, meninos negros semi-nus a brincar no meio do lixo, e isto em extensões a perder de vista. Na Europa já nem sequer em países relativamente pobres como Portugal topamos com estas situações em tão larga escala. A América não quer saber dos pobres, sejam eles nacionais ou estrangeiros, isso é ponto assente. Bem vistas as coisas, é como se sofressem de uma doença ou, pior ainda, estivessem a expiar um pecado qualquer que cometeram. É isso mesmo: se és pobre, alguma coisa hás-de ter feito para o merecer.

No comboio, o revisor, um tipo negro simpático que trata toda a gente por folks, mete-se com os passageiros e põe toda a gente a rir. É nisto que se vê o extraordinário espírito igualitário americano: o revisor é intrinsecamente igual aos passageiros, por isso pode brincar com eles sem, em nenhum momento, ser mal-educado. Não concebo uma coisa destas, nem em Portugal nem na maioria dos países europeus.

Em Washington vou encontrar uma situação de manifesta e chocante segregação racial. Os negros daqui (e, soube-o depois, também os de Filadélfia ou de Baltimore, por exemplo) não têm nada a ver com os de Nova Iorque. São seres marginalizados e carentes de auto-estima, de aspecto pouco cuidado e macambúzio, que se movem como sombras. Embora representem dois terços da população da cidade, quase só ocupam profissões menores.

No dia mais frio do ano (foi o que me disseram) percorri surpreso o gigantesco parque temático de inspiração militarista que é o centro (histórico?) de Washington: monumento à guerra da independência (memorial de Washington); monumento à guerra civil (memorial a Lincoln); memorial à guerra da Coreia; memorial à guerra do Vietname; memorial, então em construção, à II Guerra Mundial; cemitério militar de Arlington. Não fossem os (magníficos) museus do Smithsonian, e só haveria memórias de guerra para ver.

Em todo o século XX, só dois presidentes americanos não declaram guerra a alguém. Dizia Kennedy, ao enviar os primeiros conselheiros americanos para o Vietname, que os únicos presidentes que ficam na história são os que ganharam uma guerra. Os EUA vivem em permanente mobilização contra um qualquer inimigo. Quando, estranhamente, não há nenhuma guerra convencional, lança-se uma guerra contra o terrorismo, por absurda que a expressão seja (um oxímoro, para ser preciso). Se nem isso for possível, serve uma guerra metafórica contra o álcool, contra a droga ou contra o tabaco. O estado de guerra permanente parece ser uma condição indispensável para manter o país unido.

De resto, eles não falam dos EUA como um país, mas sim como uma «nação», uma coisa ridícula num país composto de tantas nações que, aliás, nunca desistem de o ser: gerações depois de chegarem à América, os americanos continuam a considerar-se italianos, gregos ou irlandeses; simplesmente, à antiga identidade sobrepõe-se uma outra que a complementa sem a anulas. Acho esta convivência pacífica de múltiplas identidades uma excelente ideia e um exemplo para os povos de todo o mundo. Os europeus, em particular, têm muito a aprender com isto.

Ao mesmo tempo, isto tem um preço: uma identidade nacional muito frágil que, na ausência de um inimigo externo, ameaça esboroar-se. Não se deixem iludir pelos sinais exteriores de patriotismo, tais como a devoção agressiva ao hino e à bandeira; em minha opinião, aqui como noutros países, esse apego aos símbolos apenas trai insegurança. Os países verdadeiramente coesos como, por exemplo, a Holanda ou Portugal, não ligam muito a essas trivialidades.

Isto leva-nos a outro problema, que é o do peculiar estatuto da direita neste país. Os EUA são, na verdade, uma democracia incomparável, em muitos aspectos exemplar. Ao escrever isto, estou a pensar na democracia não apenas como um sistema político, mas como um sentimento, uma forma de viver e de relacionamento entre as pessoas. Se a palavra não estivesse irremediavelmente queimada, eu chamar-lhe-ía uma democracia popular. Em nenhum sítio como aqui é tão permanentemente manifesta a presença do elemento popular como algo com uma legitimidade cultural idêntica à da aristocracia na Europa, continente onde o povo ainda é objecto de uma desconfiança sistemática por parte das classes cultivadas.

Numa sociedade democrática consolidada e evoluída como esta, a direita vive em permanente humilhação, em estado de alerta, em desassossego. Por isso, ela manifesta-se aqui, de uma forma particularmente extrema, como aquela aliança entre os privilégios e a ignorância que é em toda a parte a sua estratégia essencial desde que triunfou o sufrágio universal.

Um acontecimento como o 11 de Setembro, ao colocar a população em estado de choque, é a oportunidade ideal para essa direita passar ao ataque tanto interna como externamente. O medo é o ambiente de que ela se alimenta para subverter regras de convivência política nacional e internacional construídas ao longo de décadas. O pretexto, a ideia de que, se o terrorismo põe em causa o modo como o mundo estava organizado, ainda precisamos de instituições políticas musculadas para lhe fazer frente.

Parafraseando, por uma vez, George Bush: «Make no mistake about it.» Esta direita com que agora temos que nos haver de Haider a Portas, de Berlusconi a Rumsfeld, não tem nada a ver com aquela a que estamos habituados. Não é conservadora nem neo-conservadora, é radical e revolucionária.

Dois anos depois do 11 de Setembro, a invencível brigada da estupidez está de regresso.


Guerra. Aí está o 11 de Setembro. Ou muito me engano, ou hoje há guerra na blogoesfera. Pela minha parte, tenciono participar.

10.9.03

Leni. Há apenas dois dias referi-me num post a Leni Riefenstahl a propósito das tentativas de reabilitação da memória de Heidegger, e eis que os jornais de hoje informam que ela acaba de morrer.

A propósito de Leni ouve-se coisas do género: «O conteúdo é ignóbil, mas a forma artística é sublime». O mesmo vale por dizer: «Tal criminoso é repugnante, mas a inteligência do seu método merece respeito». Do assassinato como uma das belas-artes?

A propósito do Triunfo da Vontade (um título que é, em si mesmo, todo um programa filosófico), dizia Leni num documentário que há aproximadamente um ano vi na televisão que se limitou a filmar o nazismo tal como era deixando-nos a nós, espectadores, a liberdade de o criticar. Mas o Triunfo é uma das peças centrais criadoras da ideologia nazi; logo, Leni esteve longe de ser neutra nesse processo. O confronto entre o filme do 1º Congresso e o do 2º mostra bem como um bando semi-anárquico de desordeiros foi transformado pelo poder do cinema e pela arte de Leni numa organização temível e respeitada.

Leni Riefenstahl concebeu o modelo estético e propagandístico que hoje reconhecemos como especificamente nazi. A força irresistível resultante da unidade do povo sob o comando do chefe que encarna a vontade colectiva – é essa a mensagem nuclear do manifesto cinematográfico por ela produzido. Como é que alguém que faz este filme pode pretender que ele não é um objecto político?

A total ausência de sentido de culpa revelada até ao fim da vida por gente como Leni Riefenstahl, Heidegger ou Junger é, em si mesma, um sintoma da moral nacional-socialista: cada indivíduo limita-se a fazer o que tem que fazer, e isso é-lhe ditado pela vontade do povo mediada pelo chefe. Como pode alguém que se limita a obedecer a ordens ser culpado?

8.9.03

A careca de Heidegger. A descoberta de Auschwitz no final da II Guerra teve, entre outras consequências, a de o nazismo ter sofrido uma condenação final e definitiva, como se, face àquele horror, quaisquer palavras fossem supérfluas.

Não há nada a lamentar nisso, excepto talvez o facto de o processo da ideologia nacional-socialista ter ficado incompleto. A imagem última de Hitler e seus seguidores é a de uma trupe de carniceiros paranóicos cujo comportamento releva mais da insanidade mental do que da política. Os filmes americanos que depois vimos durante décadas contribuiram para fixar o retrato dos nazis como um bando de idiotas sedentos de sangue. E ponto final.

O lado negativo deste processo de diabolização é que, à sucapa, o movimento de ideias que abriu caminho à chegada de Hitler ao poder sobreviveu relativamente incólume, talvez porque se presume que uma seita de criminosos não pode ter um verdadeiro pensamento. Em consequência disso, as pessoas ignoram ainda hoje o verdadeiro alcance das obras de pensadores e artistas como Carl Schmitt, Ernst Junger, Martin Heidegger e Leni Riefenstahl, para apenas mencionar alguns.

Heidegger, particularmente, apesar de sempre ter recusado retratar-se e condenar explicitamente o nazismo, inspirou correntes importantes da filosofia no pós-guerra, a mais curiosa das quais foi aquela que, por via de Foucault, Lacan e Althusser influenciou directamente uma parte das ideias esquerdistas dos anos 60.

Acontece que, há dias, o Caminhos Errantesretomou a historieta segundo a qual Heidegger teria sido vigiado pela polícia do regime depois de 1935. É preciso que se saiba que essa fábula, posta a correr pelo próprio Heidegger, não tem qualquer fundamento. E, embora seja verdade que ele criticou o biologismo em conferências então realizadas, não o fez por por causa das suas eventuais consequências racistas, mas porque era contra a biologia, como, aliás, era contra todas as ciências.

Num comentário certeiro a esse post, Pedro Mexia referiu-se criticamente a Heidegger, Schmitt e Junger como más companhias a evitar. Replicou Alexandre Sá, entre outras coisas, que eles não têm ideias políticas comuns, o que só pode ser entendido como uma anedota, tendo em conta que essa tríade produziu em conjunto o essencial das ideias políticas nazis. É um facto que Junger, o diletante autor do principal manifesto do totalitarismo, se dissociou do nazismo mais tarde com toda a clareza, nunca tendo embora rompido com Heidegger. E é verdade que Heidegger, depois de abandonar o reitorado da universidade de Friburgo, não voltou a ocupar cargos públicos; mas isso apenas porque os seus amigos das SA foram massacrados na noite das facas longas. Quanto a Schmitt, nunca abjurou das suas ideias.

Por conseguinte, embora tenham seguido caminhos diferentes, e haja diferenças marcantes entre eles, no momento decisivo estiveram juntos do mesmo lado da barricada e contribuiram activamente para o triunfo de Hitler. As motivações pessoais podem ter incluido uma boa dose de vaidade e oportunismo, mas não restem dúvidas de que a convicção também esteve presente.

É mais do que altura de abordarmos estes assuntos com mais sentido de responsabilidade, o que implica uma atitude de desconfiança em relação aos escritos desta gente.

5.9.03

Guterres? Sim, Guterres. Eu, que nunca simpatizei com o estilo sonso do engenheiro Guterres, dou por mim de vez em quando a ter saudades deles. Como foi possível corrermos com um homem assim? Simpático, educado, culto, inteligente - o que é que nos passou pela cabeça?

A aturar todos os dias este poder globalmente boçal, estes ministros analfabetos, estes políticos grosseiros da maioria, não admira que este estado de espírito comece a generalizar-se. Por comparação com estes, a quem alguém mais qualificado que eu já chamou palermas, Guterres começa a parecer um príncipe. E, ainda por cima, cada vez mais parece mais que o muito mal que disseram dele era apenas motivado pelo despeito, porque, afinal, apesar de todo o alarido, nem em matéria de equilíbrio das contas públicas conseguem fazer melhor.

Guterres, próximo Presidente da República? É um bocado chato, até porque a sua inopinada e injustificável demissão, deixando tudo de pantanas e os amigos políticos entregues aos bichos, não teve na verdade outro sentido senão o de preparar tranquila e egoisticamente o seu caminho para S. Bento.

Mas é bem possível que consiga, tendo em conta que, chegado o momento da verdade, tudo estará esquecido e perdoado. Nessa altura, o resultado dependerá antes de mais das alternativas, e, se a alternativa for aquele em que todos estamos a pensar, até eu irei votar no dulcíssimo engenheiro.

4.9.03

Não, obrigado. Pacheco Pereira lamenta hoje no ABRUPTO o facto de não ser hábito em Portugal os jornais tomarem partido definindo uma linha editorial clara em relação a acontecimentos como a guerra do Iraque, o que dá origem a posições divergentes e, até, a editoriais contraditórios escritos por diferentes posições.

E justifica a sua posição dizendo que «isso clarifica a relação com o leitor». Pela minha parte, se não se importam, eu dispenso bem essa clarificação. Como leitor prefiro conhecer as várias posições e dispenso que me impinjam a do dono. A confusão da pluralidade faz-me bem à cabeça porque me obriga a pensar.

Um jornal, dizia alguém que de repente não consigo identificar, é um país a falar consigo mesmo. Não é, não deve ser, um sujeito a impor a sua fala aos restantes.

Obrigadinho, ó Pacheco, mas por mim fico com estes jornalinhos imperfeitos como o Público, onde até o Director tem direito à sua opinião.

3.9.03

Afinidades electivas. Com tanto blogue por aí, acaba por não haver muitos com os quais tenha verdadeira empatia. Uma excepção: O País Relativo.
À atenção da ladroagem. Os jornais citaram recentemente um estudo de uma empresa alemã segundo a qual cerca de um terço das pessoas usam como código dos seus cartões de crédito, do seu telemóvel ou de qualquer outro artefacto a sua data de nascimento ou a dos seus filhos. Vai daí alertavam para os riscos de insegurança inerentes a essa prática.

Tomo nota, mas acrescento que o panorama é muito mais grave do que possa parecer. É que muitas outras pessoas, certamente tantas como as que recorrem à prática anterior, adoptam estratégias ainda mais elementares tais como escolher códigos tipo «0000», «5555» ou «1234», convencidas de que só elas se lembraram disso. Outras ainda escolhem uma sequência de números que desenhe um símbolo no teclado, por exemplo uma cruz: «456852».

Estas opções são escolhidas, por exemplo, por pessoas semi-analfabetas que têm mais facilidade em memorizar desenhos do que números.

Como é que eu sei todas estas coisas? Pois tenho o prazer de informar que estas e muitas outras dicas de valor inestimável para assaltantes são explicadas em detalhe no livro «You must be joking, Mr. Feynman», do célebre prémio Nobel da Física Richard Feynman, o qual se entreteve a estudar as técnicas psicológias de arrombamento de cofres em Los Alamos, quando fez parte da equipa que construiu a primeira bomba atómica. A sua ideia era persuadir os colegas de que os procedimentos de segurança eram muito rudimentares e convencê-los a serem mais cuidadosos.

Depois não digam que não foram avisados!
Porque é tão má a televisão? Ninguém pode ignorar que a televisão é hoje, em Portugal, uma área de desastre. Digo-o com mágoa, porque acreditei na altura que o aparecimento da televisão privada conduziria de facto a um alargamento das liberdades públicas. Aqui há uns anos fiquei também irritado quando alguns sujeitos, entre eles o Karl Popper, defenderam que era necessária alguma forma de censura para meter a televisão na ordem, mas hoje confesso que já não sei o que pensar.

A avaliar simplesmente pelos resultados, dir-se-ía que a televisão privada foi uma má ideia e que, por conseguinte, talvez fosse preferível voltar a trás e renacionalizá-la. Mas vamos mais devagar e comecemos primeiro por tentar compreender o que se está a passar.

O primeiro mito que é primeiro desfazer é o de que a televisão é má porque o público telespectador é chunga e, para assegurar boas audiências, os pobres directores dos canais têm que pôr no ar coisas mesmo ordinárias. Isto é falso, pelo simples motivo de que a televisão generalista de sinal aberto não é paga pelos telespectadores, mas pelos anunciantes. Dir-se-á que é a mesma coisa, visto que os anunciantes só dão dinheiro para programas que o público quer ver, mas isso não é verdade.

Esta questão é um bocado técnica mas, basicamente, quando as pessoas não pagam um preço pelas suas escolhas, não há maneira de manifestarem adequadamente as suas preferências e, portanto, não existe um mercado bem formado. Isso sucede porque os telespectadores não podem manifestar a intensidade das suas preferências. Se metade das pessoas mais uma querem ver o Big Brother e metade menos uma quer ver uma peça de Shakespeare, ganha o Big Brother, mesmo que as pessoas que preferem o teatro estivessem dispostas a pagar um preço mais elevado para ver o seu programa preferido do que as que vão mais à bola com o reality-show.

É isso que explica que, entre todas as formas de cultura popular, é a televisão que produz os piores resultados de todos os pontos de vista, incluindo o da simples decência. Se alguém julga que este ponto de vista é muito original, desengane-se: recomendo a consulta de um manual standard, como o Microeconomia e Comportamento, do Robert H. Frank, traduzido para português pela McGraw Hill, que nas páginas 659 e 660 trata deste assunto. Peço desculpa, mas às vezes dá jeito um argumento de autoridade.

Portanto, podemos tirar daqui duas conclusões. Em primeiro lugar, o problema não está no gosto do público, mas sim no facto de ele não poder manifestar-se de uma forma apropriada. Em segundo lugar, a degradação da qualidade da televisão está associada à gratuidade e, portanto, não se põe quando ela é paga.

Vai daí, um argumento liberal diz que a própria indigência da tv generalista de sinal aberto leva-a à ruína, na medida que, em cada mês que passa, cada vez mais gente muda para o cabo (parcialmente pago) e para os canais codificados. A televisão é má porque é grátis, mas vai-se tornando melhor à medida que deixa de sê-lo. O resultado final será bom para todos e salvará a democracia da degradação.

Eu acho que isto é verdade, mas há um problema. Este sistema condena à ignorância e à mediocridade aqueles que não têm meios para aceder à televisão, ou seja, os mais pobres (e, já agora, os seus filhos), o que me parece inaceitável.

É por isso que é indispensável um serviço público de televisão de qualidade. Sucede, porém, que isso custa dinheiro, muito dinheiro. Valerá a pena? Para mim, a resposta é positiva: o problema principal da RTP nunca foi ser cara (o seu badalado déficite é inexpressivo, comparado com os de outras televisões públicas europeias como, por exemplo, a espanhola), mas sim ser má. Numa época em que as crianças são mais educadas pela televisão do que pela escola, não será óbvia a importância do investimento numa televisão de qualidade para o desenvolvimento harmonioso do país?

O problema é que a nossa classe dirigente não entende isto, como também nunca entendeu a importância da educação popular, razão pela qual só agora estamos a atingir os níveis de alfabetização que a Escandinávia alcançou no final do século XIX. Está aqui um problema político sério que deve ser encarado com a importância que merece.

2.9.03

Choque e espanto. Depois de dois anos a falar-se diariamente do crescimento do endividamento e do déficite orçamental, faz impressão o persistente tabú em torno de uma questão que está nas origens desses problemas. Refiro-me, é claro à adesão ao euro.

A adesão ao euro exigiu uma marcha forçada no sentido da convergência nominal, ou seja, da rápida descida da inflação e das taxas de juro. Segundo a ortodoxia vigente, não haveria problema nenhum, porque a teoria das expectativas racionais ensina que, ao contrário do que Keynes pretendia, as pessoas não sofrem de ilusão monetária. Quer isto dizer que, se a inflação e a taxa de juro descem a par e a taxa de juro real permanece mais ou menos constante, o endividamento não aumentará.

Sabemos agora como essas teses estavam erradas. A brusca descida da taxa de juro estimulou os particulares e as empresas a recorrerem cada vez mais ao crédito. Era de esperar que assim fosse, num país paupérrimo, de procura reprimida pela tradicional dificuldade de aceder ao crédito. Toda a gente aproveitou para comprar uma casa melhorzinha ou para fazer obras, muitos para comprar o primeiro carro. Ao contrário do que se insinua, o grosso do endividamento não pagou férias nas Caraíbas, mas coisas triviais para o conforto das famílias. Quanto às empresas, a generalidade adquiriu equipamento de que necessitava, e os grandes grupos investiram no Brasil ou na Polónia.

Tudo muito previsível, portanto. Argumenta-se agora que o Estado deveria ter contrariado este movimento reduzindo substancialmente o seu déficite. Aqui é preciso lembrar várias coisas. Em primeiro lugar, não se vê porque é que o Estado não deveria aproveitar também as taxas de juro baixas para investir em infra-estruturas essenciais que tanta falta fazem ao país. Ou será que o Estado deve endividar-se quando as taxas de juro estão altas? Em segundo lugar, o déficite foi de facto reduzido muito significativamente até 2000. Em terceiro lugar, ainda não vi ninguém fazer contas e mostrar de que dimensão deveria ser o supéravite do Orçamento para contrariar o endividamento do sector privado; se calhar é porque a dimensão da tolice deve permanecer em segredo.

Logo, chegamos à conclusão de que as dificuldade que estamos a passar se devem essencialmente à forma precipitada como aderimos ao euro. Agora, há pessoas que chamam a atenção para o facto de a Grécia estar a crescer mais do que nós, esquecendo-se de notar que, precisamente, a Grécia não aderiu ao euro.

Esta direita agora é assim. Lança com grande fragor umas campanhas de choque e espanto, sejam eles militares ou económicas. Depois, quando acontece exactamente aquilo que era de prever, as razões anteriormente evocadas são esquecidas e inventam-se a posteriori novas justificações, sem nunca, nunca, dar a mão à palmatória. De passagem, os responsáveis acabam por ser os anjinhos que acreditaram piamente neles e não perceberam a tempo aquilo em que se estavam a meter.