7.10.03

O Papa-espectáculo. O facto mais notável do consulado do Papa João Paulo II é a sua adesão aos princípios da sociedade do espectáculo.

Muitos católicos, ignoro se a maioria, mostram-se muito satisfeitos com a enorme visibilidade que a sua crença reconquistou por essa via no espaço mediático. Mas eu, que embora não seja crente, valorizo o sentimento religioso, não vejo razões para contentamento, nem creio tampouco que ele exista no Reino dos Céus.

Parece-me a mim (mas é possível que esteja antiquado), que a Igreja se empobrece ao reduzir-se a uma indústria de conteúdos, descendo ao nível de outras instituições que não me atrevo a nomear.

Porque a verdade é que, hoje por hoje, o Vaticano pouco mais faz do que organizar espectáculos vistosos com grande cobertura televisiva. A máquina de propaganda do Papa funciona em grande, e as deslocações do Papa são o pretexto preferido para gerar publicity. A encenação obedece a um esquema altamente previsível e estereotipado: o Papa, uma frágil figura perdida no meio da multidão, mostra-se aos crentes à distância, circulando no seu Papamóvel (uma designação que é um tratado) por entre alas de jovens organizados brandindo estandartes e envergando vestes coloridas. As cores (amarelo e branco) são as do Vaticano, não as de Cristo. O ambíguo slogan Totus tuus é omnipresente. Do Papa só se aproximam os poderosos deste mundo e os altos dignitários da Igreja.

Hoje, toda a gente tem vergonha de montar espectáculos inspirados no Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Excepto o Papa.

Hoje, toda a gente abomina o culto da personalidade. Excepto o Papa.

Ouvi Maria José Nogueira Pinto afirmar na televisão que «os jovens hoje estão todos à volta dele». Trata-se, sem dúvida, de uma ilusão de óptica resultante da inserção numa particular classe social. Como se constata nas reportagens, as Jotas do Papa são exércitos de betinhos que se mobilizam para agitar bandeiras e distribuir sacos de plástico e depois, dentro do mesmo espírito, vão dali para a caravana automóvel do CDS/PP. Tudo forma, nenhum conteúdo.

Aliás, se os jovens estivessem de facto «todos à volta dele», caberia perguntar porque é que tantos encontram mais sentido na droga do que na religião. O problema, precisamente, é que a Igreja, através do seu máximo representante, não tem mais nada para lhes propor senão agitação e propaganda.

Escutei hoje estas palavras da boca do Papa no telejornal da hora do almoço: «O rosário é um compêndio do Evangelho». Não sei, mas aqui há uns tempos atrás, isto seria considerado blasfémia. Como pode o Papa pretender que rezar o rosário substitui com vantagem a leitura da palavra revelada? O que isto significa é que, neste cristianismo segundo Karol Woytila, o ritual é tudo, e o sentimento religioso nada.

E chegamos aqui ao ponto central. Na minha maneira de ver, a Igreja de Roma converteu-se, no fundo, à frivolidade e ao vazio que aparenta criticar. A religiosidade foi substituida pela encenação. O Papa aderiu ao niilismo, ou seja, o vazio é a sua doutrina.

É claro que, apesar disso, há aqui um propósito reaccionário, que é o de restaurar a doutrina pré-Vaticano II. Mas, incapaz, de assumir abertamente o debate das questões que interessam aos cristãos, a estratégia de João Paulo II consistiu principalmente em evitá-lo desviando as atenções e fomentando o culto dos símbolos do poder, manobra que, ao longo dos séculos, já deu sobejas provas de eficácia. As orientações específicas relativas à fé regridem na precisa medida em que as controvérsias são silenciadas e, de preferência, esquecidas.

Tenho que reconhecer que, apesar disso, a Igreja portuguesa é hoje infinitamente mais inteligente, humana, caridosa, numa palavra, cristã, do que no tempo em que frequentei a catequese. Mas isso sucede porque de facto, senão de palavras, ela caminhou ao arrepio das orientações de João Paulo II. E isto leva-nos a outro ponto: na igreja de hoje, uma coisa é o que se diz, outra o que se faz. Ou seja, os costumes dos católicos praticantes evoluiram imenso, e não têm nada a ver com as proclamações escandalizadas do cardeal Rattzinger, pelo que a Igreja é, provavelmente, mais hipócrita hoje do que em qualquer outro período desde a Renascença.

Os católicos deveriam estar muito preocupados, porque todas as contradições que se encontram escondidas vão saltar à luz do dia quando este Papa desaparecer. A Igreja esteve parada nos últimos vinte e cinco anos, porque este Papa, cuja eleição foi um episódio da Guerra Fria, nunca deixou de viver nesse tempo. Com isso, perdeu vinte e cinco anos, uma eternidade nos dias que correm. Quando acordar, é muito provável que fique em frangalhos e que demore muito tempo a recompor-se.

Quem duvidar poderá verificar por si mesmo que, hoje mesmo, a autoridade do Papa já é uma pura ilusão. Longe de aumentar, ela diminuiu. Recordo, por exemplo, que quando o Papa criticou a guerra do Iraque, nenhum político católico ocidental se comoveu. Para todos os efeitos, foi como se ninguém tivesse falado.

Verdade ou mentira?

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