29.3.04

O que é o populismo (2)

O populismo é o endeusamento do povo.

«Voz do povo, voz de Deus» é uma afirmação que pretende deixar Deus mal visto -- uma calúnia sem fundamento, pois Deus prefere relacionar-se pessoalmente com cada um de nós e ignorar esse povo que se arvora em seu confidente.



Joan Mitchell

Solução para o despovoamento do interior

Só não é o post do dia porque foi escrito na 6ª feira.

O que é o populismo?

O populismo é toda a gente a falar daquilo que não sabe.

É presumir-se que para ter opinião basta ter boca.

É crer-se que o direito à indignação vem antes da obrigação de pensar seriamente sobre os assuntos.

É cada um acreditar que só ele mesmo é dotado de consciência moral e que todos os «outros» são ladrões.

É a ignorância militante.

É a intolerância travestida de exigência de justiça.

Há para aí muita a gente a pregar contra o populismo a quem esta carapuça serve na perfeição.


Cordula Guedemann: Im grunen, 1997.

A indignação do dia

A opinião pública portuguesa é tão tristemente previsível na sua ignorante mediocridade como o movimento das marés determinado pela sucessão das fases da Lua.

Israel abate o xeque assassino, e toda a gente se indigna com a morte violenta de um pobre e doente velhinho que os netinhos levavam ao jardim para apanhar sol na sua triste cadeira de rodas.

Um juíz decide que não há razão para proceder criminalmente contra ninguém no caso da ponte de Entre-Rios, e toda a gente que ignora tudo sobre o assunto se indigna com mais este inacreditável atropelo à justiça.

Hoje, a indignação do dia é a constatação de que só 42% das empresas pagam impostos sobre os lucros, visto que declaram não os ter.

Gerou-se desde há anos na sociedade portuguesa, e particularmente à esquerda, a ilusão de que, se as empresas pagassem o que deviam pagar, o Estado nadaria em dinheiro. Ora a verdade é que a fuga aos impostos é uma realidade marginal nas empresas que operam legalmente (a economia subterrânea é outra história), e os malefícios dela resultantes são principalmente as distorções que provocam na alocação dos recursos produtivos.

Devemos combater a fuga dos impostos porque é socialmente injusta e porque entrava o desenvolvimento do país, não porque os montantes envolvidos sejam de facto mirabolantes.

Na imaginação popular, um empresário (ou um patrão, como se diz na linguagem popular) é um tipo cheio de massa. Na realidade, porém, as empresas em nome individual, que predominam largamente na nossa economia, desenvolvem uma actividade irregular, camuflam situações de subemprego e remuneram muito mal os seus proprietários. Porque, na verdade, esses patrões que os nossos jornalistas ficcionam a acumular fortunas debaixo do colchão não são nem mais nem menos do que merceeiros, subempreiteiros da construção civil e comerciantes de feira que auferem vencimentos pouco acima do salário mínimo.

A maioria dessas empresas mal consegue cobrir os seus custos correntes. Quando, devido a factores ocasionais e irrepetíveis, logram gerar um pequeno excedente, é evidente que o distribuem sob a forma de suplemento salarial e não de lucros. Ou vocês imaginam que só os administradores dos bancos têm direito a prémios de desempenho?

O combate a essa dita fraude nunca se fez nem nunca se fará, nem aqui nem em nenhuma outra parte do mundo, e isso apenas porque: a) a fraude não existe; b) se existisse, a sua detecção não compensaria o custo inerente ao esforço adicional de fiscalização.

Todo este barulho resulta, portanto, de muita gente falar com enorme facilidade daquilo que não se sabe.

Venha daí a próxima indignação!

Mais uma infame conspiração sionista

Dos Prémios Nobel atribuidos entre 1951 e 2000, 32% dos de medicina, 32% dos de física, 30% dos de economia e 29% de todos os prémios de ciência foram para judeus. No entanto, os judeus são menos de 0,5% da população mundial.

Só não percebo por que raio foram dar um prémio ao Saramago. Terá sido para comprometê-lo?


Julius Bissier: Aguarela, 1959.

Insónia

Alguém tem ouvido falar do caso Isaltino?

26.3.04

Farejando vences

Quem vir a minúscula lista de links aqui à direita há-de julgar que sou um homem de poucos amigos.

Não é isso. A lista é curta porque só contem os blogues que de facto visito assiduamente. Não entendo aqueles tipos que listam 1.374 links, porque, para todos os efeitos, é a mesma coisa que não listarem nenhum.

Por outro lado, aqui não há lugar para permutas: «cita o meu blogue que eu cito o teu». Aliás, como podem confirmar, alguns dos que aí estão não remetem sequer para o meu, provavelmente nem o conhecem, ou talvez virassem a cara se se cruzassem com ele na rua. Eu recomendo segundo as minhas preferências, os outros segundo as deles, e é assim que está certo.

O que realmente me preocupa é a quantidade de baixas nas minhas melhores companhias que tenho contabilizado desde que isto começou. O primeiro foi o Cristóvão de Moura. Depois, o Flor de Obsessão. Agora, o A Oeste.

Por este andar, não sobra nenhum. Ou talvez eu tenha que me pôr outra vez a farejar por aí, em busca de algum tesouro que ainda não conheço.

Este é o guesultado de pagtiguem os dentes à gueacção

A pgefeguência pela evolução não é nada contga a guevolução. É só pogque o Mogais Sagmento não consegue dizegue os égues.

25.3.04

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Cordula Guedemann: Eskorte fur Asgern Jorn, 1997

A Al-Qaeda frequentou um MBA

A Al-Qaeda não é uma associação de malfeitores do tipo da Enron, afinal uma empresa típica do obsoleto capitalismo fortemente hierarquizado.

A Al-Qaeda é a primeira marca global a operar no sector do terrorismo, superando as limitações das marcas regionais de carácter artesanal e local.

A Al-Qaeda não está presa a causas particulares que só mobilizam um pequeno número de pessoas. Funciona no modo da mass-customization.

A Al-Qaeda segue o princípio think global, act local.

A Al-Qaeda não promete conversões, promete resultados, e esses resultados têm um significado operacional preciso: destruição e pânico.

A Al-Qaeda tem um branding eficaz, baseado na figura de Bin Laden, o seu presumível inspirador e arquitecto.

A Al-Qaeda integrou Bin Laden no star-system mundial, transformando-o num mito que inflama as imaginações tanto de simpatizantes como de inimigos.

A Al-Qaeda opera em regime de franchising construído na base da sua reputação.

A Al-Qaeda oferece aos franchisados acima de tudo a credibilidade que um grupo de maltrapilhos isolados nunca conseguiria: se é da Al-Qaeda, deve ser sério.

A Al-Qaeda oferece um serviço completo aos seus associados na preparação e implementação dos seus projectos, principalmente apoio logístico (contactos, refúgios, aconselhamento) e financeiro, quando necessário.

A Al-Qaeda é uma organização plana e horizontal, sem estruturas pesadas de comando e controlo.

A Al-Qaeda minimiza os seus custos e evita criar uma burocracia instalada e ineficiente.

A Al-Qaeda consegue desse modo permanecer muito próxima das necessidades e anseios dos seus apoiantes.

A Al-Qaeda recorre sistematicamente ao outsourcing para planear e organizar as suas acções terroristas.

A Al-Qaeda estimula o espírito empreendedor de pequenos grupos terroristas prometedores, cujos projectos são exclusivamente apreciados na base dos seus méritos.

A Al-Qaeda estimula e premeia a inovação.

A Al-Qaeda funciona como uma rede de geometria variável que continuamente se reconfigura em função das circunstâncias e dos objectivos tácticos.

Bush também fez um MBA. Ele deveria saber estas coisas.

O funil do cidadão

O que acham da ideia de o Estado criar um número de telefone único para onde todos obrigatoriamente ligaríamos quando tivéssemos qualquer problema para resolver?

Quer se tratasse de chamar a polícia ou uma ambulância, de falar com o Ministro da Economia ou com uma funcionária da Câmara Municipal de Pinhel, de chamar a brigada de esgotos da autarquia ou de solicitar uma informação ao ICEP, começaríamos sempre por ligar para lá, e só em seguida seríamos reencaminhados para o serviço competente.

Absurdo, não é verdade?

Todavia, é exactamente isso que o nosso e vários outros governos estão a fazer quando criam os chamados portais do cidadão.

Dir-se-á que é uma maneira de nos ajudar a encontrar o que procuramos no labirinto da net. Mas será que, na era do Googgle, alguém precisa que o Estado, que não sabe o que é feito do seu património imobiliário, nos mostre o caminho?

Com esta técnica de afunilamento, o que se consegue é criar sites pesadíssimos e lentos. Vendo bem, talvez seja mais rápido ir a pé.

Uma das grandes vantagens da internet é promover a descentralização e, por conseguinte, facilitar o contacto directo entre pessoas e instituições. Será que o Estado português não entende isto?

Próximo passo: criar o Blog do Cidadão com base no Abrupto.



24.3.04

Foi como invadir o México depois do ataque japonês a Pearl Harbour

O livro Against All Enemies de Richard Clarke, ex-Coordenador Nacional da Casa Branca para a Segurança, a Protecção de Infraestruturas e o Contra-Terrorismo no Conselho Nacional de Segurança do Presidente revela-nos como funciona a Administração Bush. A realidade confirma e supera o que se suspeitava.

Eis um extracto elucidativo:

By the afternoon on Wednesday (no dia seguinte ao 11 de Setembro), Secretary Rumsfeld was talking about broadening the objectives of our responses and "getting Iraq." Secretary Powell pushed back, urging focus on al Qaeda. Relieved to have some support, I thanked Colin Powell and his deputy, Rich Armitage. "I thought I was missing something here," I vented. "Having been attacked by al Qaeda, for us now to go bombing Iraq in response would be like our invading Mexico after the Japanese attacked us at Pearl Harbour."


Cordula Guedemann: La deutsche vita, 2000-01

22.3.04

Interesses e princípios

A ideia, recentemente reiterada pelo Liberdade de Expressão a propósito das sequelas do 11-M, segundo a qual «os países não têm princípios, têm interesses» parece muito plausível até ao momento em que nos interrogamos sobre como se define um interesse, como se conclui que certos países têm certos interesses e que vias adoptam esses países para decidir quais são os seus verdadeiros interesses.

Mais um bocadinho, e começa-se a perceber que, para os países como para as pessoas, adoptar princípios como regras de conduta pode poupar muita maçada, muito tempo e muita disputa inconclusiva.

Se não estou em erro, os liberais um bocadinho mais sofisticados já descobriram isto há muito tempo.

A não perder

Já tiveram oportunidade de visitar as chamadas «acessibilidades» dos novos estádios do Benfica e do Sporting?

Complicadas, perigosas, incompreensíveis -- trata-se de autênticos monumentos à estupidez nacional.

O Bin Laden de Israel

Tem razão o embaixador de Israel em Portugal quando diz que o seu país acaba de eliminar o seu Bin Laden. Quem tem o direito de criticá-los por isso?

Acaso ouviríamos as mesmas condenações unânimes se -- como, aliás, eu acredito que já aconteceu -- soldados americanos aniquilassem Bin Laden?

O xeque Yassin era, evidentemente, um alvo militar legítimo, dado que travava uma guerra aberta, embora suja e desleal, contra o estado de Israel.


Vieira da Silva: O sono, 1968-69.

Nem uma lágrima



O xeque Ahmad Yassin sempre assumiu abertamente a sua responsabilidade por inúmeros atentados terroristas que vitimaram impiedosamente centenas e milhares de civis inocentes. Até ao último dia da sua vida, nunca parou de exortar os seus seguidores à prática repetida desses actos demenciais.

Este velho cego e aleijado que fazia sem pudor a apologia da morte sempre me pareceu a imagem da própria estupidez assassina que só se alegra quando espalha à sua volta a destruição e o sofrimento.

Nele, tudo era coerente com o seu niilismo essencial: a ridícula vozinha de cana rachada, os raivosos impropérios contra o inimigo sionista, as ímpias invocações de Alá, o cruel olhar morto, a cadeirinha de rodas transportada por acólitos transtornados, a total ausência de piedade pelas vítimas e de compaixão pelos jovens suicidas que obedeciam às suas ordens, o seu ódio visceral à vida, em suma.

No fundo, pouco lhe interessava o seu próprio povo, porventura a maior vítima dos seus desmandos. Um fanático como o xeque Yassin só pode realizar-se na sua própria aniquilação. Resta-lhe o desgosto de o mundo não ter acabado com ele.

Ele foi -- e talvez permaneça após a sua morte -- um dos símbolos maiores de uma doença misteriosa a que, à falta de melhor nome, chamamos o mal absoluto.

Considero o seu assassinato pelo exército isrelita perfeitamente justificado. Chamar a isso terrorismo de Estado só desqualifica quem o faz: tratou-se de um acto de legítima defesa que nenhum de nós hesitaria em praticar quando colocado numa situação semelhante.

É bem provável que, em si mesma, a eliminação física do xeque não resolva nada de essencial. Ainda assim, é bem possível que ela tire um peso de cima da Autoridade Palestiniana, até agora refém do Hamas e impotente para pôr fim aos seus desmandos.

19.3.04



Anselm Kieffer: A Via Láctea, 1983-86.

«É a guerra, é a guerra!»

Ó filho, toma lá uma fisga e vai chatear os pardais.

É o Iraque, estúpido

É preciso recordar aos opinantes impenitentes que a grande vitória da Al-Qaeda foi a invasão do Iraque.

Adeus ao atlantismo

A tradição atlantista da nossa política internacional passa por ser um argumento a favor da sua continuidade. Mas isso é um absurdo: uma tradição pode ser um facto, nunca um argumento.

Durante séculos, Portugal foi um país sem estradas nem pontes e, mais tarde, sem caminhos de ferro -- mas com costa e navios. Do ponto de vista geo-estratégico, o país era, pois, uma ilha. Daí a tendência para relacionar-se mais facilmente com a Inglaterra, por via do comércio dos vinhos, com a Noruega, por via da pesca do bacalhau, ou com Marrocos, por via da importação de trigo, do que com a Espanha.

É a esse triste isolacionismo forçado que alguns cómicos chamam vocação atlântica. Essa vocação geograficamnente imposta só nos trouxe a persistência da miséria e o impulso para esboços de aventuras imperiais em países distantes para as quais não possuíamos verdadeiras capacidades.

Ainda assim, é útil precisar que a política externa portuguesa nunca se esgotou na aliança com a Inglaterra. Em múltiplas ocasiões – após a restauração, por exemplo -- Portugal apoiou-se na França e noutras potências continentais para se proteger da Espanha.

Os modernos meios de transporte transformaram paulatinamente esta situação ao longo do último século e meio. Ir do Algarve ao Porto por estrada deixou de ser uma impossibilidade absoluta e, de há dez anos para cá, o país, por via das auto-estradas, adquiriu uma nova identidade que não resulta do mero isolamento e ligou-se directamente à Espanha e à Europa continental.

Deixámos finalmente de ser uma ilha separada da Europa pela Espanha, aproximámo-nos dos centros de decisão continentais. Largámos a EFTA inventada pela Inglaterra, esquecemos o sonho colonial, chegámo-nos à União Europeia, inventámos uma forma de conviver pacificamente com a Espanha. Tudo coisas boas, em suma.

Porque haveríamos nós, neste contexto, de nos voltarmos a amarrar à Inglaterra e, por decorrência, aos EUA? Essa aliança pode ter sido condição de sobrevivência no passado. Hoje, só pode significar regressão política e cultural.

18.3.04



Herbert Brandl.

Notícias do desvario

Uma coisa que os últimos dias revelaram é que os nossos bushistas domésticos não se deixam atrapalhar pelos factos quando eles não convêm aos seus argumentos.

Pacheco Pereira é uma das mentes mais perturbadas, como se prova pelo artigo de opinião de hoje no Público.

Não, não é verdade que depois do 11 de Setembro os europeus se tenham des-solidarizado dos americanos. Não, não é verdade que se tenham mostrado indisponíveis para acompanhar os aliados de além-atlântico quando a parada subiu.

A verdade, bem pelo contrário, é que os EUA beneficiaram de um apoio quase universal nos meses seguintes, e que essa simpatia se materializou numa assistência incondicional às operações conduzidas contra o regime talibã afegão.

A coligação rompeu-se apenas quando a administração Bush abandonou o combate ao terrorismo para conduzir uma operação infundada e disparatada contra o Iraque. Está hoje claro para todos os que querem ver que a invasão do Iraque não tinha qualquer relação com o 11 de Setembro.

O Iraque não tinha armas de destruição massiva. O Iraque não fomentava o radicalismo fundamentalista. O Iraque não dava abrigo à Al-Qaeda. O Iraque não apoiava financeira ou logisticamente a Al-Qaeda.

Nessas condições, o mínimo que se pode dizer é que as razões do encarniçamento de Bush contra o Iraque permanecem obscuras.

Após a invasão do Iraque, os grupos terroristas retomaram progressivamente o controlo do Afeganistão e cercaram de novo as tropas aliadas em Cabul. O Iraque tornou-se, agora assim, numa das principais bases terroristas. E, finalmente, os principais bastiões dos terroristas, a Arábia Saudita e o Paquistão, não foram sequer beliscados.

Há um ano, podia-se legitimamente hesitar sobre a via mais correcta a tomar perante a decisão americana de atacar Saddam e abrir uma nova frente de combate. Não se sabia muita coisa, e ninguém podia assegurar que não houvesse armas de destruição massiva. Hoje sabemos -- sabem todos os que não querem fechar os olhos -- que essa operação equivaleu a lançar gasolina sobre o fogo. Nada melhorou, tudo se complicou.

Deveremos permanecer cegamente prisioneiros do aventureirismo de Bush e dos neo-conservadores? Hoje, o combate sério contra o terrorismo, no Iraque e no resto do mundo, tem como condição prévia o afastamento de Bush e dos dirigentes políticos de outros países que com ele alinharam.

Para fugir a estas conclusões incontornáveis, Pacheco Pereira e outros que tais enveredam por raciocínios cada vez mais retorcidos. A peroração moralista que divide os povos do mundo em, por um lado, os bravos (os americanos e, até ver, os britânicos), e, por outro lado, os cobardes (tipicamente os franceses e os espanhóis) é um argumento de uma tal inépcia que só não provoca a gargalhada universal porque já nos habituámos à indigência intelectual desta nova fornada de direitistas belicistas.

Mas o supra-sumo da falta de argumentos racionais tem lugar quando Pacheco nos vem dizer que o que lhe interessa a ele não é «nem a análise espanhola, ou europeia, ou americana, é a análise da Al-Qaeda». Isto é uma forma de discutir um bocadinho estalinista, não vos parece?

Errar é próprio do homem, dizia Santo Agostinho. Mas persistir no erro, acrescentava ele, é coisa do demónio.


Anselm Kieffer: E a terra ainda treme, 1982.

Visão estratégica

A sagacidade estratégica de Durão Barroso não deixa de me surpreender.

Governamentalmente, ficou refém de Paulo Portas, um indivíduo manifestamente infiável que ele há poucos anos com justiça qualificara de racista social.

Economicamente, vendeu a alma ao pacto de estabilidade quando já era manifesto que ele em breve seria abandonado pelos seus próprios inventores.

Presidencialmente, comprometeu-se com Santana Lopes, o candidato melhor colocado para perder essas eleições.

Internacionalmente, atrelou-se a Aznar e virou as costas ao eixo franco-alemão, para agora ficar irrelevantemente colado à Polónia.

Com sólidos aliados como estes, quem precisa de inimigos?

17.3.04

Se Aznar tivesse ouvido os conselhos da fada madrinha, nada disto acontecia...



Paula Rego: Pinóquio.

A propósito de má fé

Que o Wall Street Journal acredite que o 11 de Março foi o primeiro atentado bombista na Europa ainda se compreende, visto que o jornalismo que por ali se faz se encontra ao nível do pior que se gasta cá na casa.

Mas que o Abrupto diga a mesma coisa, já me parece excessivo.

Lembram-se do atentado da rua de Rennes em 1988? Foi em Paris, perpetrado mais ou menos pela mesma malta que agora atacou em Madrid. E é só um exemplo.

Portanto, a verdade é exactamente o inverso. Tirando Oklahoma, obra de um lunático de extrema-direita e as Torres Gémeas, a América tem muito pouca experiência destas coisas. Além disso, nunca desde a independência tinha sido atacada no seu próprio território por forças estrangeiras.

Consequência: perdeu o sangue frio com grande facilidade e seguiu sem protestar a orientação insensata de um presidente não-eleito que só se preocupa com os negócios da família.

Cuidado: o hábito de tratar a verdade com excessiva descontracção pega-se!

Weak on terror



Leiam este artigo de Paul Krugman, publicado no New York Times de ontem:

"My most immediate priority," Spain's new leader, José Luis Rodríguez Zapatero, declared yesterday, "will be to fight terrorism."... Polls suggest that a reputation for being tough on terror is just about the only remaining political strength George Bush has. Yet this reputation is based on image, not reality. The truth is that Mr. Bush, while eager to invoke 9/11 on behalf of an unrelated war, has shown consistent reluctance to focus on the terrorists who actually attacked America, or their backers in Saudi Arabia and Pakistan.

This reluctance dates back to Mr. Bush's first months in office. Why, after all, has his inner circle tried so hard to prevent a serious investigation of what happened on 9/11? There has been much speculation about whether officials ignored specific intelligence warnings, but what we know for sure is that the administration disregarded urgent pleas by departing Clinton officials to focus on the threat from Al Qaeda. After 9/11, terrorism could no longer be ignored, and the military conducted a successful campaign against Al Qaeda's Taliban hosts. But the failure to commit sufficient U.S. forces allowed Osama bin Laden to escape. After that, the administration appeared to lose interest in Al Qaeda; by the summer of 2002, bin Laden's name had disappeared from Mr. Bush's speeches. It was all Saddam, all the time.

This wasn't just a rhetorical switch; crucial resources were pulled off the hunt for Al Qaeda, which had attacked America, to prepare for the overthrow of Saddam, who hadn't. If you want confirmation that this seriously impeded the fight against terror, just look at reports about the all-out effort to capture Osama that started, finally, just a few days ago. Why didn't this happen last year, or the year before? According to The New York Times, last year many of the needed forces were tied up in Iraq. It's now clear that by shifting his focus to Iraq, Mr. Bush did Al Qaeda a huge favor. The terrorists and their Taliban allies were given time to regroup; the resurgent Taliban once again control almost a third of Afghanistan, and Al Qaeda has regained the ability to carry out large-scale atrocities.

But Mr. Bush's lapses in the struggle against terrorism extend beyond his decision to give Al Qaeda a breather. His administration has also run interference for Saudi Arabia -- the home of most of the 9/11 hijackers, and the main financier of Islamic extremism -- and Pakistan, which created the Taliban and has actively engaged in nuclear proliferation. Some of the administration's actions have been so strange that those who reported them were initially accused of being nutty conspiracy theorists. For example, what are we to make of the post-9/11 Saudi airlift? Just days after the attack, at a time when private air travel was banned, the administration gave special clearance to flights that gathered up Saudi nationals, including a number of members of the bin Laden family, who were in the U.S. at the time. These Saudis were then allowed to leave the country, after at best cursory interviews with the F.B.I. And the administration is still covering up for Pakistan, whose government recently made the absurd claim that large-scale shipments of nuclear technology and material to rogue states -- including North Korea, according to a new C.I.A. report -- were the work of one man, who was promptly pardoned by President Pervez Musharraf. Mr. Bush has allowed this farce to go unquestioned.

So when the Bush campaign boasts of the president's record in fighting terrorism and accuses John Kerry of being weak on the issue, when Republican congressmen suggest that a vote for Mr. Kerry is a vote for Osama, remember this: the administration's actual record is one of indulgence toward regimes that are strongly implicated in terrorism, and of focusing on actual terrorist threats only when forced to by events.

16.3.04

Quem vamos invadir agora?

Esta é uma pergunta que alguém deveria fazer a Bush na próxima conferência de imprensa.

Metáforas perigosas

Falar de «guerra contra o terrorismo» é errado se não for só uma maneira de acentuar o carácter extremo e cruel deste confronto.

Porque, tomando à letra essa expressão, é-se levado a supor que o problema se resolve só com tanques, tropas helio-transportadas e bombas inteligentes.

Esses recursos têm a sua relevância, como se provou no dertube do regime dos talibãs, mas não são nem os únicos nem os mais importantes. Se fossem, estaria já em vias de preparação uma nova invasão na sequência do massacre de Madrid.

Mas que país haveria de ser invadido, agora que o Iraque já está militarmente ocupado?

Não, a guerra contra o terrorismo resolve-se essencialmente com o combate internacional ao crime organizado e essa é uma tarefa essencialmente política para a qual, por enquanto, carecemos das instituições e dos instrumentos adequados.

Talvez seja este o momento de nos prepararmos para enfrentar não só este como uma série de outros problemas que com ele se encontram estreitamente correlacionados.

Dúvida

Há um facto nas eleições espanholas que tem passado desapercebido: depois das urnas fechadas, várias sondagens continuavam a dar a vitória ao PP, algumas por uma diferença substancial.

Não deveria isso levar-nos a questionar o rigor das sondagens que antes mostravam o PP próximo da maioria absoluta?

15.3.04



Menez: As nuvens, 1990.

Serão capazes?



O governo socialista espanhol tem agora uma oportunidade única de dar início a uma inversão no sentido do combate ao terrorismo.

Embora a Espanha seja ao nível internacional uma pequena potência, todas as atenções se encontram concentradas sobre ela. Muito depende do sentido de responsabilidade e da coragem que nesta ocasião consiga demonstrar.

A Espanha não pode pura e simplesmente retirar-se do Iraque. Mas também ninguém lhe pode exigir que continue a apoiar sem condições a estratégia americana, até porque é cada vez mais claro que ela não tem futuro.

Do que se trata, portanto, é de exigir que a ONU assuma o controlo do processo no Iraque, mesmo depois da transição do poder para as mãos dos locais. Obviamente, o Iraque deverá permanecer um protectorado internacional pelo menos durante a próxima década. Se os EUA não concordarem, é justo que assumam sozinhos o ónus de aguentarem sozinhos a situação no Iraque. Ao que julgo saber, foi exactamente isto que o PSOE sustentou durante as eleições.

Mas isto não basta. Toda a gente espera que o primeiro país que rompeu a coligação explique concretamente qual é o seu programa positivo para combater o terrorismo, tanto mais que acaba de ser vítima do primeiro ataque da Al-Qaeda em larga escala na Europa.

É preciso, por conseguinte, explicar que o terrorismo não se combate nem com cedências nem com violência indiscriminada. As redes terroristas são ágeis e voláteis, mas necessitam de infraestruturas de apoio, das quais a mais importante é a financeira.

É altura de alguém trazer para a primeira linha do debate político o problema do crime organizado e das cumplicidades objectivas de que disfruta um pouco por todo o mundo. O governo socialista espanhol pode fazê-lo. Aliás, é quase obrigado a fazê-lo, se não quiser perder a face.

Acho que isto é simples, acho que é verdadeiro, e acho que toda a gente percebe. O caminho é estreito e perigoso, mas existe.

Apetece-me discutir

Naturalmente, é muito mau que a Espanha retire o seu exército do Iraque na sequência dos ataques terroristas do 11 de Março.

Mas, se isso vier a acontecer, de quem será a culpa? Dos povos que se recusam de servir de carne para canhão? Ou de Bush e senhoritos aliados, que se lançaram numa guerra sem outro sentido que não o de ampliar o império Halliburton?

Quer dizer, eles conduzem-nos com a maior leviandade para aventuras militares, sem qualquer consideração pelos cidadãos que os elegeram, e, depois, usam as consequências perversas dos seus atropelos para fazer chantagem sobre o nosso voto.

Ora, eu acho, precisamente, que devemos usar as armas políticas ao nosso dispor enquanto é tempo, ou seja, enquanto não nos embrenhamos por completo num caminho sem retorno.

É a única maneira de obrigá-los a pensarem duas vezes antes de se meterem noutra.

Eufemismos

«Mentira» diz-se agora «má gestão».

O que se passou em Espanha?

Não sabemos ainda o que de facto aconteceu ontem em Espanha.

O PP perdeu porque muitas pessoas que já planeavam ir votar mudaram o sentido do seu voto? Ou porque muitas pessoas que não pensavam votar mudaram de ideias? Ou terá sido uma combinação destes dois efeitos?

Não é indiferente saber-se o que de facto aconteceu.

Se se tratou de uma mudança do sentido de voto, ela pode ter acontecido porque: a) os eleitores ficaram chocados pelo oportunismo revelado pelo PP; b) os eleitores acham que a ameaça terrorista justifica a retirada imediata das tropas espanholas do Iraque.

Para mim, a primeira razão é boa; a segunda é má.

Mas, se a surpresa eleitoral tiver resultado do afluxo às urnas de eleitores que propendiam para a abstenção, o caso é ainda mais intrigante, porque inverte a suposta tendência para o indiferentismo. Também aqui podem ter acontecido várias coisas: a) as pessoas acharam que, face à gravidade da situação, não tinham o direito de se absterem; b) as pessoas acreditaram que, ao contrário do que previam as sondagens, havia uma hipótese real de derrotar o PP.

Estas razões são as duas boas. Uma porque traduz um assomo de responsabilidade social; outra, porque põe em causa o lado negativo das sondagens como self-fulfilling prophesy que dissuade as pessoas de irem votar.

Sabe-se que a moderna abstenção tende a afectar sobretudo os pobres, os iletrados e a esquerda, por razões complexas que não vêm agora ao caso. Dir-se-ía que, ontem, os auto-excluídos da democracia encontraram razões suficientemente fortes para tomarem partido.

Enquanto não se souber exactamente o que se passou -- e eu espero que alguém tenha a curiosidade de fazer um inquérito de opinião que o esclareça -- tudo isto serão apenas meras especulações.

Entretanto, não se esqueçam: votem enquanto podem, porque a democracia é um bem de luxo. Aliás, é mesmo o único bem de luxo a que os pobres têm acesso.

13.3.04

Polícia do pensamento

Pacheco Pereira e a impagável Helena Matos deram o exemplo: para eles, a tarefa prioritária na actual conjuntura da luta ideológica é denunciar uma pretensa tibieza da esquerda face ao terrorismo. Com isto deixam claro que, para uma parte da direita, o terrorismo é apenas um pretexto para atacar a esquerda com argumentos especiosos.

Embora eu não esqueça nem desculpe a atitude compreensiva de que a extrema esquerda, com Louçã à frente, sempre deu provas face a fenómenos como a ETA ou as FP25, só uma completa má fé, bem na linha dos processos de intenção típicos dos controleiros estalinistas, permite insinuar que, hoje, a esquerda portuguesa na sua generalidade alimenta algum carinho pelos etarras.

Tem alguma importância saber se foi a ETA ou a Al-Qaeda? Num certo plano, ou seja, no dos crimes contra a humanidade de que este é mais um, é evidente que não. Noutro plano, o de entender precisamente que inimigo temos pela frente, é claro que sim. Mas isto tem tempo, não temos que tirar hoje mesmo uma conclusão.

Mas a razão porque Pacheco teria ganho desta vez muito em estar calado é que, precisamente, foi o governo espanhol quem decidiu que essa questão não só tinha toda a relevância, como deveria ser decidida de imediato.

Pois não ouvimos nós todos na rádio o Ministro do Interior de Espanha declarar peremptoriamente «não haver qualquer dúvida» de que se tratava de obra da ETA? E porquê excomungar energicamente quem ousasse duvidar dessa tese e tentar saloiamente controlar a mensagem passada pelos próprios media internacionais, se não houvesse aqui uma vergonhosa tentativa de capitalizar a comoção gerada pelos atentados em favor do resultado das eleições deste fim de semana?

Acredito que ninguém pode seriamente descartar a hipótese de o atentado ser perpetrado pela ETA, mesmo que fosse verdade essa organização nunca ter operado desta maneira. Mas também ninguém pode com honestidade jurar a pés juntos que os culpados estão identificados.

Se o comportamento do governo espanhol nesta conjuntura não pode legitimamente ser qualificado como populismo do mais reles, não sei o que poderá.

Por um estoicismo activista

Anda um sujeito muito tranquilo na sua vidinha, precupado com o relatório que tem que entregar, o curso que vai começar, a investigação que não há forma de avançar, e eis que a explosão de uma sucessão de bombas em Madrid o arranca destas triviais mas honestas preocupações e o força, quer queira quer não, a cuidar de assuntos que tocam no cerne dos grande problemas do mundo de hoje.

Aprecio o ponto de vista daqueles que dizem que o terrorismo só pode ser combatido com eficácia se atacarmos as suas causas, mas não entendo bem o que querem dizer. Por vezes, sugerem que isso significa retirar as tropas americanas do Iraque, desmantelar os colonatos israelitas na margem ocidental, instaurar uma ordem internacional mais justa, e por aí afora.

Descontando o facto de que nenhum desses problemas é tão fácil de resolver quanto possa parecer, o equívoco essencial reside em pensar-se que essas são as causas do terrorismo internacional. Não são: se tudo isso fosse feito, não tenham dúvida de que os terroristas exigiriam em seguida o controlo sobre os poços de petróleo do Texas ou a devolução da Andaluzia. Não só porque esses gestos seriam entendidos como rendições, como, sobretudo, porque o fundamento da sua actuação não é, de facto, nenhum propósito político preciso.

Muita gente parece pensar, e alguma afirma-o mesmo, que a origem do terrorismo radica na pobreza e na opressão a que a maioria da humanidade se encontra hoje submetida. Daí até à condenação sem nuances da chamada globalização vai apenas um passo.

A opressão extrema dá origem a fenómenos de resistência extrema, incluindo actos terroristas, mas não ao terrorismo indiscriminado como este a que estamos a assistir. Para ser eficaz como arma política, o terrorismo tem como funcionar como uma ameaça credível contra aqueles que designa como adversários. Assim, sendo, exerce-se sobre alvos bem determinados, sejam eles pessoas individuais (como muitas vezes fez a ETA) ou grupos humanos bem determinados (como faz o Hamas em Israel). Sob esta forma, o o terrorismo é conhecido desde a mais remota antiguidade.

Mas o terrorismo indiscriminado não é -- repito: não é -- apenas uma forma de luta política particularmente perversa. Pura e simplesmente, não é uma forma de luta política.

Devemos, pois, tomar a sério a ideia segundo a qual na origem destes fenómenos estão certas formas de paranóia assassina. Lidamos aqui com psicopatas de tipo particular que, em consequência do poder da tecnologia actual e da liberdade de circulação de pessoas e ideias, se tornaram particularmente ameaçadores para a sociedade mundial.

Nem os governos nem os políticos podem dizê-lo, é claro, mas este tipo de terrorismo é um pouco como os tremores de terra ou a sinistralidade rodoviária. Não podemos verdadeiramente evitá-los, embora possamos adoptar políticas preventivas, de algum modo semelhantes à construção anti-sísmica, orientadas para a minimização dos seus efeitos.

Esta conclusão resulta precisamente do carácter indiscriminado destes atentados. É possível proteger razoavelmente os chefes de estado, os principais edifícios onde se encontram sedeados os órgãos do poder e o quartéis. Mas não é possível proteger milhões de cidadãos que podem ser atacados nos transportes públicos, nos locais de trabalho, em locais de lazer, em suas casas -- em qualquer parte, enfim.

Ao contrário do que se diz, para levar a cabo estes ataques não é necessária qualquer sofisticação ou capacidade especial de planeamento. Basta combinar algum conhecimento de explosivos com uma dose suficiente de desequilíbrio mental.

Paradoxalmente, quanto mais acentuarmos as medidas de segurança destinadas a proteger-nos de ataques terroristas, mais indiscriminados eles se tornarão. Porque será muito difícil atacar a equipa inglesa de futebol durante o Euro 2004, mas muito fácil lançar uma bomba entre a multidão que se dirige a um estádio para assistir a um desafio dessa mesma equipa minutos antes do jogo.

Não podemos por conseguinte impedir em absoluto a ocorrência de actos terroristas como aquele que na passada quinta-feira teve lugar em Madrid, mas podemos talvez condicioná-los e controlar a sua escala. Estas circunstâncias aconselham uma atitude de princípio a que, à falta de melhor designação, chamarei estoicismo activista.

Tem-se dito -- e é verdade -- que a confiança nos poderes da razão é posta em cheque com acontecimentos sumamente irracionais destas proporções e consequências. Acredito que devemos aceitar esse desafio, em vez de reagirmos de forma igualmente irracional, sob pena de nos resignarmos à derrota progressiva de todos os valores em que acreditamos.

Não sei se recordam de que, logo a seguir ao 11 de Setembro, ganhou terreno a opinião segundo a qual uma das formas mais eficientes de combater o terrorismo seria a eliminação dos paraísos financeiros off-shore que escapam a todo e qualquer controlo institucional. Curiosamente, nunca mais se voltou a falar disso.

A minha tese é simples: as formas mais eficientes de combater o terrorismo foram já claramente enunciadas por diversas pessoas nos últimos anos. Trata-se apenas de articulá-las numa política integrada, colocá-la na agenda das principais organizações internacionais e pressionar a sua implementação. De passagem, e como requisito prévio para a sua implementação, proceder-se-á à necessária reforma das Nações Unidas, a qual passa pela penalização, indo até à expulsão, de países que não merecem a confiança da comunidade internacional, em simultâneo com o reforço dos seus poderes.

O terrorismo internacional indiscriminado -- sublinho bem que é deste que estou a falar -- não é um fenómeno racional resultante de causas claramente identificáveis. Como tal, não podem ser combatidas as suas raízes políticas, muito menos através de uma estratégia de apaziguamento que alguns ingenuamente sugerem.

Mas o terrorismo internacional não pode subsistir, pelo menos com a sua força actual, se não beneficiar de certas condições facilitadoras. Ñós não queremos questionar algumas dessas condições, tais como os direitos e garantia dos cidadãos, a liberdade de expressão, a liberdade de movimentos, o acesso à internet, etc.

Mas podemos e devemos questionar a liberdade de circulação dos capitais tal como hoje ocorre, que nenhum princípio de sã gestão económica recomenda. Tal como podemos e devemos questionar certas instituições cujo traço distintivo é a protecção de actividades ilegais. Essas actividades só podem existir porque a comunidade internacional não dispõe, ou não quer dipor, de meios para impor a sua vontade a países e interesses particulares que prosperam à custa dessas falhas de regulação.

Tal como devem ser chamados à pedra estados pária que prosseguem programas de fabrico de armas de destruição massiva ou dão cobertura e treino a terroristas, devem também ser submetidos a escrutínio todos aqueles que dão guarida ao crime organizado internacional.

Chegados aqui, é indispensável referir o problema central de tudo isto. Ninguém duvida seriamente de que a grande fonte de financiamento do terrorismo é o narcotráfico. Toda a actividade do regime talibã era, como se sabe, suportada pelo comércio do ópio.

A guerra contra a droga é, por conseguinte, a vertente decisiva da guerra contra o terrorismo. Uma e outra estão a ser perdidas porque nem a guerra de Clinton contra a droga nem a guerra de Bush contra o terrorismo assentam em pressupostos racionais.

A únida forma segura de combater o crime organizado é pôr termo ao proibicionismo como esteio fundamental do combate à toxicodependência. A produção, a comercialização e o consumo da droga devem ser total e completamente despenalizados. De preferência, os estados nacionais devem intervir nesse processo, não só para assegurar a protecção e o tratamento dos toxicodependentes, como para secar a principal fonte de financiamento do crime organizado e, por consequência, do terrorismo internacional.

Estas ideias, como digo, não são novas. Muitas delas já foram discutidas durante suficiente tempo com suficiente profundidade para nos sentirmos razoavelmente seguros da sua correcção e viabilidade.

Por enquanto só existe um suposto plano de combate ao terrorismo -- que é o da direita. Em resumo, ele propõe-se combater a violência com mais violência e, a prazo, ameaça pôr em causa os direitos e as liberdades fundamentais dos cidadãos. Na verdade, como o ilustra a invasão do Iraque, não combate eficazmente o terrorismo e agrava ainda mais a situação. Temos boas razões para acreditar que, para essa direita, o terrorismo é apenas um pretexto para subverter as instituições democráticas e impor uma agenda política orientada pelos interesses dos poderosos.

Um ano e meio depois do 11 de Setembro é tempo de as coisas começarem a mudar.

A exportação da ignorância

Um professor de História que tive no liceu ensinava-nos que não se deve tentar falar espanhol com os espanhóis. Basta que falemos à palhaço para que eles nos entendam.

Os repórteres de televisão portugueses deslocados para Madrid para cobrirem os atentados terroristas estão a confirmar todos os dias a justeza desse conselho.

Só que, neste caso, não é apenas o sotaque dos clowns, mas a própria essência do espectáculo circense, que eles imitam na perfeição.

11.3.04



Patrick Caulfield. O Helen, I roam my room, 1970.

9.3.04

Chiado, in memoriam

Agradeço ao leitor que me esclareceu, em comentário ao post «Mistérios de Lisboa» que, de facto, Chiado existiu e até disse não sei o quê.

Ora eu não duvido que ele tenha de facto existido. Segundo a «História da Literatura Portuguesa» de António José Saraiva e Óscar Lopes, Chiado seria um frade relapso que se celebrizou pelas suas composições satíricas anti-clericais. Rumores não confirmados acrescentam que residiria num bordel ali à Rua de S. Julião.

Mas o que eu gostaria de entender é que misterioso critério levou a autarquia lisboeta (se não me engano em 1848) a erigir ali aquela estátua a um autor tão insignificante, quando haveria tanta gente mais relevante para homenagear.

Conjecturo eu que a justificação deverá ser semelhante à que levou a baptizar com o nome de Eusébio um avião da TAP. Ou talvez tenha sido para chatear a Igreja numa época de furores anti-clericais em sintonia com as quadras do justamente esquecido versejador do século XVI.



Empreendedorismo à portuguesa

Qualquer pessoa que já tenha tentado criar uma empresa em Portugal sabe que o mais difícil não é nem arranjar clientes nem conseguir financiamento. -- É registar o nome.

As coisas passam-se assim: um sujeito dirige-se ao Registo Nacional de Pessoas Colectivas todo contente, convencido de que tem um nome catita para a sua empresa. Engano: já existe outra com a mesma designação.

«Tiver azar», pensa ele, «mas não faz mal. Vou pensar numa alternativa e depois volto cá.» Trezentos e quarenta e sete nomes depois, todos eles rejeitados sob o pretexto de que já existem, começa finalmente a desconfiar de que alguma coisa não bate certo.

Haverá assim tantas empresas a operar em Portugal? Uma olhadela à Lista Telefónica revela-nos que a esmagadora maioria dessas empresas de facto não existe. Pura e simplesmente alguém registou um nome e ficou-se por aí, se calhar à espera de extorquir dinheiro a alguém que pretenda de facto usá-lo. Empreendedorismo à portuguesa, portanto.

É engraçado. Se eu conseguir registar um nome, tenho um período de tempo limitado para constituir a empresa (se não me engano, apenas uns 30 dias). Mas, se não a criar, o nome continua lá registado, e ninguém o pode usar. Haverá um prazo limite de validade para esse registo? Se há, ninguém consegue explicar-me qual é.

Aqui há uns anos só se podia registar nomes estrangeiros se fossem latinos ou gregos. Mas uma amiga minha conseguiu registar um nome alemão, sem que alguém conseguisse justificá-lo. Quando percebi do que gastava a casa, eu próprio consegui registar um nome inglês com uma justificação disparatada.

Curiosamente, à luz da mesma regra, o nome Microsoft não poderia ter sido reservado, excepto pela própria empresa, mas quando ela chegou a Portugal não pôde usá-lo, porque alguém chegara primeiro! É por isso que a sua firma comercial no nosso país é antes MSFT.

Entretanto, o país «modernizou-se», e já se admite toda a sorte de nomes, mas não vale de nada. Os registadores mistério já avançaram por aí e tomaram conta de todas as designações que vocês consigam imaginar. De maneira que temos dezenas de milhar de empresas (a maioria delas com nomes de pessoas individuais), mas milhões de nomes cativos.

Em desespero de causa, uma outra amiga minha chamou à sua nova empresa «P.1437», passe a publicidade. Aprovado! Mas não riam antes de tempo, porque os resgistadores mistério estão à espreita e, neste momento, já devem ter esgotado todos os números com menos de 397 algarismos.

Um governo que quisesse de facto fazer alguma coisa pelo espírito empresarial começaria por resolver primeiro estas situações anedóticas. Reformas mais complicadas poderiam ficar para depois.

Tenho dito.


8.3.04



Alechinsky: Festa dos lapões, 1981.

Mistérios de Lisboa

Quem seria o célebre poeta Chiado que emprestou o seu nome a uma das praças mais nobres da capital da Lusitânia?

Alguém alguma vez leu ao menos um verso ou uma linha da sua lavra? Será que ele existiu mesmo?

Pergunta ingénua

Essa coisa da disciplina partidária não será inconstitucional?

Se os deputados são livremente eleitos pelos cidadãos, como pode alguém legitimamente condicionar o sentido do seu voto na Assembleia, presumivelmente em resultado de alguma ameaça oculta ou promessa inconfessável?

E serei só eu que me interrogo sobre estas coisas?

Pergunta ingénua

Essa coisa da disciplina partidária não será inconstitucional?

Se os deputados são livremente eleitos pelos cidadãos, como pode alguém legitimamente condicionar o sentido do seu voto na Assembleia, presumivelmente em resultado de alguma ameaça oculta ou promessa inconfessável?

E serei só eu que me interrogo sobre estas coisas?

4.3.04



Kitaj: Ohio gang, 1964.

Para inglês ver

O mais interessante nas intensas manobras em curso tendo em vista descriminalizar o aborto sem todavia o despenalizar -- ou será ao contrário? -- é que se manifesta aqui mais uma vez o irresistível chico-espertismo nacional.

Não se resolve o problema -- acho que não é preciso explicar porquê --, mas finge-se que se resolve.

Inventa-se uma solução muito arrevezada, mas juridicamente aceitável (acima de tudo, é preciso satisfazer a visão particular do mundo dos juristas) ficamos todos muito melhor com a nossa consciência, os estrangeiros se calhar até vão pensar que o país está a civlizar-se -- e passa-se adiante.

Que as mulheres não sejam presas, mas possam continuar a morrer devido às deficientes condições em que abortam, isso é apenas um pormenor. Tenham paciência...

3.3.04

Em louvor do tabaco



Esta coisa de toda a gente estar a deixar de fumar não pode ser encarada como um mero problema de saúde pública. Trata-se, não duvidem, de um verdadeiro retrocesso civilizacional.

Um mundo que não fuma é, necessariamente, um mundo que não sonha, ou que sonha menos, ou que sonha pior. A curva de popularidade do fumo acompanhou de perto, quer-me a mim parecer, a ascensão e queda do romantismo enquanto movimento social e artístico, ou melhor, enquanto forma de estar e de ser.

Um mundo que não fuma é um mundo que quer a todo o custo viver mais, nem que seja pior. Que cuida muito de factos, de números, de médias, de tendências, de leis, de organizações, e para o qual, por consequência, a saúde é um mero fenómeno estatístico. Assim sendo, este mundo atenta pouco no acontecimento e no momento irrepetíveis que, maravilhando-nos, nos proporcionam o acesso directo à felicidade.

Um mundo que não fuma é um mundo que não medita, não convive, não discute, não se exalta, não conversa, não namora, muito menos seduz.

Primeiro, proibiram o fumo nos cinemas, depois nos autocarros e nos aviões, agora no futebol. Que enorme, que inconcebível degradação da nossa qualidade de vida!

(E como é possível ver-se futebol sem fumar? Fosse alguém tentar explicar uma coisa dessas ao meu avô!)

Com a generalização do consumo do tabaco, o planeta conheceu o período de mais intenso crescimento da produtividade de toda a história da humanidade. A indústria expandiu-se, as cidades cresceram, a agricultura floresceu. Os transportes e as telecomunicações aproximaram os homens. O analfabetismo foi erradicado em todos os países civilizados. O número de cientistas vivos excedeu o de todos os que existiram até hoje. Fomos à Lua, estamos a iniciar a exploração de Marte. Descobrimos os segredos essenciais da matéria e da vida. E eis que, no auge desta epopeia, um bando de insensatos disfarçados de benfeitores da humanidade decidiram atacar o motor de todo este progresso: o tabaco. Esperem pela pancada!

Neste mundo não há, evidentemente, lugar para Humphrey Bogart. Mas também não o há para Churchill, porque Churchill sem charuto não faz sentido. E Sherlock Holmes, e Sartre, e Mae West? Também não têm lugar, nenhum deles tem lugar. Os grandes fumadores foram, bem vistas as coisas, a pleiade dos nossos tempos.

O tabaco foi banido, a cerveja só é aceitável se não tiver álcool, o açúcar está mal visto... Vivemos hoje num mundo de meninas, essa é que essa.

Depressa, um novo vício, por favor!



A criação do mundo



O ponto de partida pode ser um quadrado preto sobre fundo branco, como entendeu Malevitch. O próprio ensaiou ainda um quadrado branco sobre branco. Em seguida passou a compor cruzes a partir de quatro quadrados, mas depois cansou-se e partiu para outra.

Rothko agarrou nas coisas nesse ponto e tentou descobrir que mundos seria possível inventar recorrendo apenas a quadrados e rectângulos. Em geral, não necessitou de muitos: dois ou três eram suficientes.

Descobriu que os contrastes cromáticos (ou a quase ausência deles) constituem matéria-prima bastante para criar um universo de uma enorme riqueza visual. Uma ideia simples original foi-se sucessivamente desdobrando em infinitas execuções, cada uma das quais nos dá a ver algo que nunca suspeitáramos.

É na redução da forma ao mínimo indispensável (ou inevitável) que a cor se revela do modo mais sublime.

Esta criação não compete com Deus, dado que é deliberadamente pobre. Não tenta reproduzir, muito menos melhorar, o mundo visível pré-existente. É uma criação de um tipo diferente, que, atendo-se ao essencial, consegue intuir aquelas verdades que se podem mostrar, mas não nomear.

É humilde, porque o seu projecto é minimalista; mas ousada, porque desvela o que antes ninguém vislumbrara.

A linha clara



Não era só a linha que era clara. Naquele tempo também o eram as ideias, as situações, a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, o belo e o feio, nós e os outros, o futuro e o passado, o justo e o injusto, o que é e não é arte, a ordem e o caos, a esquerda e a direita, a ciência e a fraude, a notícia e a ficção, o amor e a indiferença, o conhecimento e a superstição, a coragem e a cobardia, a filosofia e a mistificação, a história e a fábula, a dedicação e a subserviência, o herói e o traidor, a sinceridade e o fingimento, a resistência e o terrorismo, a liberdade e a tirania, Deus e o nada.

Mas depois a gente toma conhecimento que o Hergé, esse supremo activista do humanismo internacionalista, tinha (e, ao que parece, sempre manteve) simpatias fascistas, e essas linhas de demarcação perdem nitidez e começam a esbater-se.

2.3.04



John Goto: Praia.

1.3.04

Ainda e sempre, Borges



Quem for à procura de um curso de literatura inglesa no «Curso de literatura inglesa» de Borges -- publicado postumamente a partir dos apontamentos das suas aulas) -- corre o risco de ficar seriamente desapontado.

Trata-se apenas de um livro de memórias -- de memórias dispersas polarizadas em torno de certas linhas de certas páginas de certos livros, alguns assumidamente menores, que nalgum momento por alguma razão Borges amou.

O seu assunto é a relação do autor com um certo número de escritores, mais escoceses que ingleses, que, embora siga uma ordem cronológica, não se preocupa em cobrir nem o conjunto da literatura inglesa, nem sequer algo que se assemelhe aos seus autores mais significativos. Que ele não se esforça por cumprir este segundo desiderato prova-o o facto de Conrad, um dos eleitos de Borges, nem sequer ser mencionado.

Como sempre, do que Borges verdadeiramente fala é da sua visão muito pessoal da literatura, e também das suas usuais obsessões com os sonhos, os espelhos, a literatura, a gnose, a memória e os tigres.

De absolutamente novo, para mim, apenas a descoberta da influência do poeta Robert Browning sobre a concepção dos contos do escritor argentino. Tenho que entender melhor o que se passou aqui.


Qual foi o último livro que abandonou a meio?



«The Blind Assassin», de Margaret Attwood, com grande mágoa minha.

A autora escreve maravilhosamente, mas, embora só tivesse ideias para umas 300 páginas, resolveu esticá-las até às 600.

Acontece a muito boa gente, mas eu é que não posso perder mais tempo. Tenho outros livros à espera.

Quem sabe se talvez noutro dia, noutro tempo?...



John Goto: Hunters.