9.4.04

A eliminação dos galácticos e o fim da história



Real Madrid, Barcelona, Bayern de Munique, Manchester United, Arsenal, Milan, Juventus, Inter -- todas os mais poderosos clubes da Europa se encontram este ano afastados das meias finais da Liga dos Campeões.

Dentre os sobreviventes, só o Chelsea ombreia em poder financeiro, que não em historial desportivo, com esses clubes. Não sendo propriamente pobres de pedir, Porto, Mónaco e Corunha são usualmente outsiders da principal competição europeia de clubes desde que, na sequência da Lei Bosman, a FIFA reformulou o seu modelo em função das exigências dos clubes mais poderosos dos maiores países do Continente.

O entusiasmo algo pueril pelo capitalismo todo-poderoso e incontrolado decretou uma nova orgânica de organização do futebol assente na predominância do clube-empresa sobre qualquer outra consideração desportiva, económica ou política.

Eliminadas todas as barreiras à livre circulação dos jogadores no espaço comunitário, nada mais podia impedir que os grandes clubes açambarcassem os melhores futebolistas, deixando apenas os restos (praticantes jovens ou, alternativamente, em fim de carreira) para os outros.

Como o poder dos clubes resulta hoje fundamentalmente das receitas televisivas e estas dependem da dimensão dos mercados publicitários de cada país, decorreu daí que, tirando os clubes espanhóis, italianos, ingleses, alemães e franceses, mais ninguém tinha efectivamente hipóteses de competir com sucesso. Os clubes das potências futebolísticas europeias de segunda linha – Portugal, Holanda, Escócia, Bélgica, Rússia, Jugoslávia, Roménia, Suécia – que anteriormente coleccionavam títulos europeus, foram reduzidos à condição de meros paus de cabeleira.

O mais importante, porém, é que esta organização do futebol prefigurou o que de mais errado há hoje na União Europeia: a concentração de todo o poder real num reduzido directório de grandes países com exclusão de todos os restantes. Eles jogam à bola entre si, nós assistimos.

(Curiosamente, os EUA, onde o capitalismo europeu pretensamente vai buscar a sua inspiração, têm o cuidado de não organizar o seu desporto profissional desta maneira tão estupidamente auto-destrutiva.)

Este modelo tinha, porém, uma falha. Nos clubes-empresas coexistem duas lógicas opostas, a financeira e a desportiva. A menos que os clubes sejam totalmente subtraídos ao controlo dos seus sócios e adeptos, a lógica desportiva tenderá sempre a sobrepor-se, e ela traduz-se na pressão para conquistar títulos comprando os melhores jogadores disponíveis no mercado que, não por acaso, também são os mais caros.

Alimentada pela escalada das receitas televisivas apropriadas pelos clubes, a inflação dos preços dos jogadores atingiu em meia dúzia de anos valores inimagináveis. Quando, ao virar da primeira recessão, as primeiras caíram, os clubes entraram em profunda crise financeira. Mesmo aumentando os seus níveis de endividamento, em 2003 foram pela primeira vez obrigados a moderar os seus impulsso para ir mais uma vez ao mercado recrutar as estrelas em ascensão.

Duas excepções apenas: o Chelsea, alimentado com dinheiro fresco directamente proveniente das máfias russas; e o Real Madrid que, para comprar a estrela David Beckham, prescindiu de se reforçar noutros sectores mais carentes da equipa.

Não é, pois, fortuita a eliminação prematura dos grandes emblemas milionários na Liga dos Campeões. Quando as estrelas já em declínio (há quantos anos ouvimos falar de Figo, Giggs, Henry, David ou Shevtchenko?) não podem, por força de restrições financeiras, ser substituídas por outras em ascensão, abre-se um espaço para que outros clubes que primam pela sua organização colectiva também possam brilhar.

É por isso que a derrota dos galácticos e similares é uma boa notícia para todos os que de facto gostam de futebol, e ainda mais para os que entendem que a consciência europeia se forja, em grande medida, pela participação nas competições futebolísticas. Nós, portugueses, começámos a sentirmo-nos europeus quando o Benfica venceu a final de Berna e os cantores portugueses pela primeira vez participaram nos festivais da canção da Eurovisão.

Á entrada do século XXI, repetiram-nos até à exaustão que o futuro pertenceria às grandes unidades empresariais e que, por isso, não haveria alternativa à concentração do poder económico. Se, no futebol, se provar que não é necessariamente assim, o futuro voltará a estar em aberto. Talvez o fim da história ainda esteja longe.

Não estar do lado dos poderosos voltará a ser considerada uma atitude racional, não um mero devaneio romântico. Outras galáxias aguardam talvez por nós.

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