30.11.04

Foi com a mão mas foi golo


O detalhe

Tudo se decidiu quando Santana, eventualmente aconselhado pelos seus conselheiros de imagem, se apresentou perante o Presidente da República com um dossiê debaixo do braço.

Santana Lopes com um dossiê debaixo do braço é uma situação que, pelo seu ineditismo, não poderia deixar de inspirar desconfiança. Nenhuma proposta que ele apresentasse nessas circunstâncias poderia merecer qualquer credibilidade.

O que Sampaio de facto disse a Santana

«Mas então o que é isto? Você fala, fala, mas depois nunca acontece nada de concreto e palpável. Ah, e tal, porque é jovem, porque o governo ainda é um bébé na incubadora, porque as televisões o perseguem, e mais isto, e mais aquilo, porque torna, porque deixa, porque frito, porque cozido, até que eu começo a sentir uma impressão aqui, e apetece-me dizer: alto aí. Porque há outros que me dizem, vamos lá a sentar e a conversar, e sim senhor, no efectivo da realidade já é outra conversa! Mas, assim, eu fico chateado, é claro que eu fico chateado! Ora!»

A segunda vinda do messias

No estado em que o país se encontra, parece claro que quem se chegar à frente e apontar um rumo tem todas as condições para levar toda a gente atrás.

Com o seu indiscutível sentido da oportunidade política, Cavaco acaba de dar esse passo. Com o artigo do Expresso de sábado, Cavaco passou o seu Rubicão e assumiu irreversivelmente que, por ele, os dados estão lançados. O projecto, agora, é conquistar a Presidência da República para, a partir daí, refundar o PSD e criar condições para poder voltar a disputar a maioria eleitoral ao PS. Se, por acaso, Santana se aguentar até ao Verão, até pode ser que o PSD, numa das piruetas em que é pródigo, ainda recupere a tempo das legislativas de 2006.

Dito isto, cumpre chamar a atenção para a notável vacuidade política do artigo de Cavaco Silva, o qual se limita a bramar em abstracto contra «os políticos incompetentes». Ora, se o Sr. Lopes aí está para provar que a incompetência de facto existe, é difícil acreditar que ela seja a fonte essencial dos nossos males.

Luís Filipe Pereira, Álvaro Barreto e Bagão Félix, para mencionar apenas alguns dos actuais ministros, não podem com justiça ser acusados de incompetência. Nem parece que, no que toca à competência individual dos seus ministros, o actual governo seja pior do que os de Barroso ou de Cavaco Silva. Será preciso recordar ao professor quantos ineptos povoaram os seus governos ao longo de uma década, ainda por cima em pastas de alta responsabilidade?

É um facto que o governo actual está a cair aos bocados, mas também o de Barroso já estava no início do ano. Aliás, foi por isso mesmo que Durão se pisgou e deixou o partido em herança ao amigo Lopes.

O desvario de Santana é, neste contexto, um mero fait-divers. A coligação está destroçada porque a sua política faliu. Há apenas três anos, um grupo de iluminados apresentou-se perante o país com soluções milagrosas para eliminar o déficite das contas públicas, reequilibrar a balança de transacções correntes e recuperar a competitividade do país. Como estamos bem lembrados, era tudo muito fácil: bastava emagrecer a função pública, eliminar o despesismo e, principalmente, baixar os impostos.

Isso só não fora feito antes, diziam-nos, porque os governantes socialistas eram totalmente incompetentes. Voltamos, assim, três anos volvidos, ao princípio: se os «competentes» substituírem os «incompetentes», o futuro será radioso e não teremos mais que preocupar-nos. Dá para desconfiar, não é verdade?

Ora o caso é que a última rodada de «competentes» propostos pelo PSD fracassou redondamente. Melhor: a sua política falhou redondamente: o déficite é agora maior, a dívida pública aumentou, o desequilíbrio das contas públicas cresceu, a produtividade estagnou, o desemprego disparou, a tão anunciada divergência real finalmente concretizou-se. E não sabem mais o que hão-de fazer.

Perante isto, qual é a proposta de Cavaco? Pura e simplesmente, não tem nenhuma, a não ser que se entenda que a promoção da competência é um programa político. No fundo, ele regressa com a mesma ideia simples que há vinte anos lhe permitiu conquistar o partido e o país.

A história, não o esqueçamos, tem esta tendência estranha para se repetir. Da primeira vez como tragédia, da segunda como farsa.

O futuro da democracia

Folgo por ver, cara pulga, que te decidiste finalmente a dedicar um post ao notável estudo patrocinado pelo parlamento noruegês sobre o futuro da democracia.

Não tenho conhecimento de que alguém em Portugal se lhe tenha referido até agora, apesar da sua indiscutível relevância para muitos problemas que nos afligem, muito para além da paroquial discussão sobre a «competência» e os caminhos da «regeneração» recentemente despoletada pelo Professor Cavaco.

Concordo sem qualificações com as conclusões do estudo que citas no teu post. As sugestões que há dias adiantei sobre os traços gerais a que deverá obedecer a necessária reforma do nosso sistema político, na sequência de um comentário que fizera a um post do Adufe, não só não as contrariam, como pretendem ir na mesma linha.

29.11.04

Em defesa do liberalismo

Não acreditem no que diz o Blasfémias. O liberalismo não é isto, ou não é necessariamente isto.

A ideologia do Blasfémias é apenas uma versão estridente do liberalismo para pobres de espírito, consistente numa doutrina filosófica e eticamente insustentável que pugna pela liberdade da raposa no galinheiro livre.

Quem tiver dúvidas sobre o que digo poderá tirá-las em autores tão clássicos como John Stuart Mill, ou tão contemporâneos como Rawls.

Desta vez, sim, blasfemaram. Por mim, não estou disposto a permitir que o bom nome do liberalismo seja enxovalhado desta maneira.

27.11.04



Miró: Nocturno, 1940.

Democracia, de Michael Frayn



«Spying is a good metaphor for what we all do most of the time» - Michael Frayn

Na sua peça Copenhaga, os epíritos de três personagens históricos - os físicos Heisenberg e Bohr, e a mulher deste último - são convocados de além túmulo para discutir o que realmente se terá passado no longínquo ano de 1941, quando, em plena guerra, o alemão visitou o dinamarquês em Copenhaga. Heisenberg fora assistente de Niels Bohr, e entre ambos crescera uma sólida amizade, mas agora encontravam-se divididos pelo conflito mundial que envolvia os seus dois países.

Pensa-se que Heisenberg terá procurado persuadir Bohr a colaborar no projecto alemão de construir a bomba atómica, mas nada se sabe ao certo do que ambos terão discutido nesse dia. Michael Frayn, na sua peça, oferece-nos não uma, mas várias conjecturas do que poderá ter acontecido.

Com Democracia, a sua nova peça centrada na ascensão de Willy Brandt a chanceler da RFA em 1974 e posterior queda precipitada pela descoberta de um espião da Stasi infiltrado no seu gabinete, Frayn retoma o esquema de uma construção ficcional envolvendo personagens históricos reais, alguns deles ainda vivos.

Embora não consiga, a meu ver, atingir o mesmo nível de Copenhaga, trata-se de uma peça fascinante sobre os mecanismos do poder e a complexidade que envolve a política e os seus actores em momentos históricos determinantes. A utilização da política como matéria-prima para a ficção não tem, em si, nada de novo. Basta recordar Stendhal, Conrad ou, mais perto de nós, Gore Vidal. Infelizmente, este género não tem actualmente grandes cultores, se exceptuarmos a trilogia teatral recente de Tom Stoppard The Coast of Utopia, cujo tema são os anos de formação do movimento socialista moderno em meados do século XIX, envolvendo personagens como Herzen, Bakunine e Marx.

O ponto mais fraco da peça é o seu título: Democracia. Frayn diz que não lhe chamou apenas Berlim porque, à data, Berlim não era a sede do governo; nem Bona, porque a cidade não tem a grandeza necessária. Optou por Democracia porque lhe pareceu que a peça é sobre isso mesmo: a dificuldade de, na vida privada como na pública, chegarmos a consensos sobre qualquer coisa, tomarmos decisões e pô-las em prática, algo que, acrescenta ele, também se passa dentro de cada um de nós.

Parece-me isto não só muito pobre, como totalmente lateral aos reais e sérios problemas que hoje de facto ameaçam o futuro das democracias. Logo, a peça de facto não está à altura de um título tão grandioso, o que tem como resultado algum defraudamento das expectativas.

Uma nota final para lamentar o fraquíssimo nível da representação do Teatro Aberto. Só o actor que interpreta o papel do hábil e tortuoso Herbert Wehner consegue minimamente compor um personagem. Os restantes não só não parecem fazer ideia do que isso seja, como falham a níveis muito mais elementares. Gelou-se-me o sangue quando ouvi um dizer: «isso tem a haver» e outro: «não percebestes». Percebi, sim.

Antes que me esqueça...



Convinha não ter perdido No Papel da Vítima, dos irmãos Presniakov (os rapazes do retrato), uma ferocíssima sátira encenada e representada pelos Artistas Unidos. Mas agora já é tarde...

«Olhem para mim a dizer coisas!»



Poucas pessoas terão feito tanto como Bagão Félix para destruir a sua própria credibilidade nos últimos dois anos e meio.

Depois de anunciar com grande fanfarra a intensificação do combate à fraude fiscal e de prometer a eliminação dos injustificáveis benefícios fiscais que favorecem a banca, começou agora a bater precipitadamente em retirada.

Decididamente, para satisfazer a sua própria vaidade, o ministro diz n'importe quoi. A única coisa importante é conseguir ter os holofotes dos media permanentemente sobre si.

(Não se esqueçam nunca: «Apoiante crítico de Vale de Azevedo».)

Pró e contra

Fiquei contente por ver Sócrates afirmar na sua entrevista desta semana a sua oposição à integração do gás natural na EDP, principalmente porque este imbróglio começou com o alto patrocínio de Pina Moura e contou com a cumplicidade de António Guterres. Fiquei ainda mais satisfeito por ouvi-lo dizer que a ausência de regulação de vários sectores excessivamente concentrados é um dos principais factores explicativos da fraca competitividade da nossa economia e que a desculpa de que o Estado deve favorecer o aparecimento de empresas portuguesas de grande dimensão não o comove.

Mas fiquei preocupado quando Sócrates disse que, em sua opinião, a oposição não tem a obrigação de sugerir formas de reduzir o déficite do OGE. Este tipo de afirmações deixa-me de pé atrás. É possível que, para o PS e os seus militantes, a única coisa importante seja chegar ao poder, e provavelmente estarão convencidos de que, nas actuais circunstâncias, o conseguirão mais facilmente se não fizerem muitas ondas. A mim, porém, como a muitas outras pessoas, o que interessa é saber o que farão quando lá chegarem. Já perdemos tempo que chegue com conversa da treta e o mais seguro é que, sem compromissos pré-eleitorais claros, o futuro governo PS volte a fazer mais ou menos o mesmo que fez anteriormente.

Outra vez o utilizador-pagador

Enquanto Presidente da Câmara de Lisboa, Santana Lopes criou um serviço de transporte público de mini-buses no centro histórico da cidade que, além de gratuito, faz concorrência à Carris.

Apesar de atravessarmos um período de aperto orçamental, o poder laranja continua, pois, a inventar formas de gastar dinheiro ao arrepio de todos os princípios proclamados de moralização da despesa pública, com o mau exemplo a ser dado pelo actual primeiro-ministro em pessoa.

Curiosamente, não vi até agora ninguém referir este facto.

Os negócios do senhor Lopes

A Comissão Europeu reafirmou há dias, contra a vontade do governo português, a sua oposição à integração do negócio do gás natural na EDP, e isso, note-se, apesar de o Presidente da EDP ter ameaçado sentar-se à porta da Comissão até conseguir o seu sim.

É uma excelente notícia tanto para os consumidores como para a indústria portugueses, obrigados pela ausência de concorrência no sector da energia a pagar preços elevadíssimos que degradam o nível de vida da população e prejudicam a competitividade das empresas. Só me admiro que nem as organizações de defesa dos consumidores nem as associações industriais tenham até agora mexido uma palha num assunto de tão grande importância.

Poderemos estar então descansados?

Não. Espantosamente, o Secretário de Estado do Desenvolvimento Económico, um tal Manuel Lancastre, explicou no Diário Económico de 4ª feira, logo a seguir ao chumbo da Comissão, qual é o célebre plano alternativo congeminado pelo Ministro Álvaro Barreto. E qual é ele?

Cito o DE:

«A nova proposta deverá envolver, em vez da EDP, a Parpública, posicionando-se a Eni como segundo accionista. Isto implicaria a retirada da GDP (Gás de Portugal) da esfera da Galp e a procura de uma solução indirecta para que a EDP continuasse a ter uma palavra a dizer sobre o negócio do gás.

«Outra alternativa é a entrada da própria Galp Energia no capital da GDP com 51%. Os restantes 49% ficariam nas mãos da Eni, que manterá como já acontecia antes, o presidente da comissão executiva da GDP. A intervenção da EDP far-se-ía apenas a nível da holding Galp Energia, onde continuaria a participar enquanto accionista (actualmente detém 14,7%), e através da nomeação de homens de confiança para a comissão executiva da GDP.» (sublinhados meus)

Por outras palavras, o Governo prepara-se com todo o descaramento para respeitar a letra mas não o espírito da decisão da Comissão Europeu, contando talvez que uma cunha oportuna a Durão Barroso será suficiente para deixar passar este artifício manhoso.

Como se vê, a Comissão Europeu zela melhor pelos interesses dos portugueses do que o Governo que eles elegeram, o qual acha que a sua primeira obrigação é montar negócios rentáveis para os grupos económicos cujos representantes presentemente enxameiam os gabinetes ministeriais.

É também por isso que eu sou cada vez mais europeista.


Franz Kupka: Complexo, 1912.

A coruja de Minerva chora ao entardecer

Pulido Valente manifestou há dias inclinações neo-hegelianas que eu lhe desconhecia. Sustentava ele que será melhor deixar a parelha Santana-Portas ir até ao fim do que afastá-la agora do poder, porque só assim poderão os portugueses ficar definitivamente vacinados contra a peçonha.

Por outras palavras, é preciso dar tempo para que os processos históricos, desenvolvendo-se e mostrando sucessivamente as suas diversas facetas, revelem a sua verdadeira natureza, porque o seu pleno entendimento só pode ter lugar quando chegam à sua conclusão natural. Como dizia Hegel: a coruja de Minerva voa ao entardecer.

Acontece, porém, que fenómenos como este não são inteiramente reversíveis. Uma vez afastados os dois auto-designados líderes da nação, ficará sempre connosco, como um dos mais baixos pontos da nossa história contemporânea, a suprema ignominia de nem o país nem os seus representantes eleitos terem sido capazes de evitar que a degradação atingisse um tal ponto.

E estas coisas não podem deixar de ter um poderoso efeito desmoralizador.

O que a palavra confiança quer dizer

O agora comissário europeu Barrot apropriou-se indevidamente de uns dinheiros e foi em devido tempo condenado pela justiça francesa. Barroso declarou publicamente ter toda a confiança em Barrot. Há escassos meses, Barroso afirmou também a sua total confiança no sr. Lopes, com base na qual lhe confiou, aliás, o partido e o país.

Pergunta-se: o que será que, para Barroso, a palavra confiança quer dizer? E que espécie de ciscunstâncias poderiam, no seu alto juízo, levá-lo a perder a confiança em alguém?

Barroso ainda não se apercebeu de que já não exerce a sua actividade política na parvónia. É de esperar que esse equívoco venha a trazer-lhe problemas.

Holliger



A Orquestra Gulbenkian transfigurou-se esta semana sob a direcção de Hans Hollinger.

Parte do público, cuja incultura musical não lhe permite apreciar nada que saia do cânone mais tradicional, foi insensível aos cinco lieder compostos pelo próprio Holliger sobre poemas de Trakl, mas pareceu render-se às interpretações da 44ª de Haydn e da 8ª (dita Incompleta) de Schubert. Por mim, apreciei sobretudo a subtileza da execução de Haydn: permitiu-me captar nuances nunca antes apercebidas numa peça que já escutara em múltiplas ocasiões.

25.11.04



Francis Picabia: O menino carburador, 1919.

Escondam a Musa na barraca que isto vai dar pancada

A crítica literária está de volta.

No desaniversário de Mikail Bulgakov



Num momento de desespero, Mikail Bulgakov escreveu a Estaline em Março de 1930 pedindo-lhe que o autorizasse a emigrar para o estrangeiro, já que era impedido de trabalhar na União Soviética.

Já quase esquecera a sua carta quando, uma noite, o telefone tocou às quatro da manhã do dia 18 de Abril, sexta-feira santa, quatro dias depois do suicídio de Maiakovski. Era Estaline.

Bulgakov ficou siderado. Ele sabia que Estaline assistira sete vezes à sua peça Os Turbine, versão para o teatro do romance A Guarda Branca, e ouvira inclusivamente dizer que se comovia com ela até às lágrimas. Mas não estava à espera de uma coisa destas.

Estaline perguntou-lhe o que gostaria de poder fazer. Bulgakov respondeu-lhe que o seu desejo era poder voltar a trabalhar no teatro, mas que todas as suas peças tinham sido proibidas, a começar por Os Turbine, na sequência de uma crítica arrasadora publicada pelo próprio Lunacharski nos Izvestia, denunciando-a como uma tentativa de humanizar os contra-revolucionários.

Estaline prometeu-lhe que iria «tentar usar a sua influência para resolver o assunto». Pouco depois, conseguiu emprego como assistente de produção no Teatro de Arte de Moscovo. No romance Neve Negra, Bulgakov satiriza esses anos de trabalho com Stanislavski, que considerava um oportunista sem escrúpulos.

As perseguições a Bulgakov recomeçaram durante os ensaios da sua peça sobre Molière, que se arrastaram por quatro anos, entre 1932 e 1936, dizendo-se que só a misteriosa protecção pessoal de Estaline impediu a sua prisão. Mas o facto é que ficou de novo sem trabalho e a sua saúde deteriorou-se progressivamente.

A partir de então, dedicou-se unicamente à conclusão da sua obra-prima: O Mestre e Margarida, um estranho romance em que três histórias distintas, uma visita do Diabo a Moscovo, a Paixão de Cristo e o amor entre o Mestre e Margarida, se entrelaçam de uma forma surpreendente que combina ainda a sátira política com a meditação filosófica e religiosa.

Quando cegou, em 1939, continuou a ditar alterações à sua mulher Elena. Bulgakov morreu em Março de 1940, mas o romance só pôde ser publicado pela primeira vez mais de um quarto de século depois, em 1967.

Hoje, quando de novo se agita a sua Ucrânia natal, lembrei-me dele e percorri em imaginação as ruas da velha Kiev, que apenas conheço de A Guarda Branca. Os Turbine aguardam ainda o seu dia.

24.11.04



Giacomo Balla: Rapariguinha correndo sobre um balcão, 1912.

Recapitulação da matéria dada

Foi já no sábado que o José Luís Saldanha Sanches escreveu isto no Expresso. Mas, como pode acontecer que alguém não tenha lido, a minha obrigação de bom português é reproduzir aqui a luminosa sugestão:

«Mostre ao país e a essa canalha que rosna pelas esquinas que nada deve e que nada teme.

«E para isso dê ordens para que essas brigadas em formação e essas falanges do bem e da justiça que vão acabar de vez com a fraude fiscal comecem por demonstrar o seu engenho e a sua arte examinando a sua situação fiscal: as suas declarações, as suas contas bancárias ou seus rendimentos, as suas despesas nos últimos anos.

«Não digo desde o Sporting mas ao menos desde a Figueira. Tudo.

«Para que fique de vez demonstrado perante o país e o mundo quem é Pedro Santana Lopes.»

Política a sério

Em todos os debates e encontros que se fazem por aí, só ouço gente a dizer que todos concordamos com o diagnóstico dos problemas e com o que há a fazer, mas que, inexplicavelmente, o que falha sempre é a implementação.

Ora eu não vejo ou não aceito esse alegado consenso, cuja perpétua invocação apenas revela desinteresse, quando não receio, pelo debate de ideias.

Vejo muitos a apontarem, isso sim, os mesmos sintomas, mas isso é algo diferente de um diagnóstico e muito distinto ainda de uma estratégia. O que há para aí em abundância são desabafos, estados de espírito e listas intermináveis de medidas que, todas juntas, não chegam a ser uma estratégia.

Se o diagnóstico fosse perspicaz e a estratégia certeira, caberia perguntar porque será tão difícil aplicá-la, porque uma estratégia que não cuida das condições da sua própria aplicabilidade não pode estar certa.

Eu acho que o erro de muitas discussões políticas é que passam ao lado da política porque não discutem as questões do poder, as únicas que verdadeiramente interessam. Nós temos hoje em Portugal uma plutocracia, sendo o populismo a cortina de fumo que oculta a crua realidade do perpétuo negocismo conduzido à sombra do aparelho de Estado.

Ora a plutocracia, para quem não tem paciência para ir ver ao dicionário, é o governo do dinheiro, pelo dinheiro e para o dinheiro.

As pessoas bem intencionadas que discutem as reformas da economia e da administração pública não entendem que essas coisas não se fazem porque não interessam a quem detém o poder. Tampouco entendem que o que hoje determina a condução da vida pública é a corrupção e o tráfico de influências.

Estes problemas têm que ser atacados com a criação de mecanismos de controlo democrático a todos os níveis (os famosos checks and balances), ou seja, com reformas do sistema político. São elas, por ordem de prioridade:

1. Alteração do regime de financiamento dos partidos políticos, hoje reféns de interesses obscuros.

2. Introdução dos círculos uninominais nas eleições para a Assembleia da República, para responsabilizar directamente os deputados perante os eleitores e acabar com essa multidão de representantes de não se sabe bem o quê que os partidos enfiam à surrelfa nas suas listas.

3. Provimento dos lugares de Directores Gerais por concurso público, única forma de reconstituir uma função pública competente e prestigiada.

4. Executivos camarários mono-partidários, para que as autarquias deixem de ser máquinas de distribuição de benesses na proporção dos votos de cada um.

5. Transferência de responsabilidades para as autarquias nos domínios da saúde e da educação

6. Criação das regiões político-administrativas.

Não é de esperar que os partidos tomem a iniciativa de aplicar este programa, embora já se tenham declarado favoráveis a vários pontos dele.

Está aqui um bom programa para um candidato a Presidente da República. Se aparecer alguém a defênde-lo, seja ele Guterres, Cavaco ou o Rato Mickey, terá o meu voto.



Marcel Duchamp: Nú descendo uma escada nº 2, 1912.

23.11.04

A pergunta

Jorge Miranda explica hoje no Público que, ao contrário do que se tem dito, não haveria qualquer necessidade de rever mais uma vez a já tão martirizada Constituição para propor aos portugueses uma pergunta sobre o tratado constitucional da UE que não fosse inteiramente imbecil.

E diz mais Jorge Miranda:

«(...) Passados alguns meses [desde a última revisão] já se fala em abrir nova revisão, para, diz-se, se tornar possível a realização de um referendo sobre aquele tratado. É algo de espantoso, pelo que representa: ou inépcia e incúria dos autores da revisão de Abril, ou leitura estrita do artigo 115º da lei fundamental, ou exacerbada vontade de a pôr constantemente em causa.»

Ámen. Tanta incompetência também cansa.

Os amigos do Sr. Lopes

A atribulada vida financeira do Dr. Gomes da Silva, hoje relatada pelo Público e não desmentida pelo próprio, tem que se lhe diga.

Rápido a endividar-se, lento a pagar o que deve, habilidoso a litigar com o banco do Estado, rápido a esquivar-se aos oficiais de diligências ao tempo em que era deputado da Nação, o que já se sabe de Gomes da Silva, actual ministro dos Assuntos Parlamentares, faz dele um personagem inquietante.

Os pensamentos do Sr. Lopes

«Eu sou daqueles que pensam que, quando nos esbofeteiam numa face, não devemos dar sempre a outra face.»

22.11.04

Numa galáxia distante



Levei a sério as avaras estrelinhas dos críticos, e ía perdendo este filme, cujo principal personagem não é Vincent (Tom Cruise, numa das suas melhores interpretações), mas Los Angeles, obsessivamente filmada ao longo dos seus free-ways, boa parte do tempo vista de dentro de um táxi, como de facto deve ser vista, correndo sobre um fundo de milhões de luzinhas eléctricas e sob um céu nocturno permanentemente sobrevoado por aviões.

Quem a conhece sabe que LA é uma cidade notoriamente mais difícil de filmar do que Nova Iorque. Não só mais difícil de filmar, mas também mais difícil de gostar. Por isso são precisos filmes que, ao ensinarem-nos a vê-la, nos persuadam a gostar desta cidade, que deliberadamente se afastou dos padrões das cidades europeias e do leste americano a que estamos habituados, para abrir espaço aos automóveis e às amplas vias pelas quais eles circulam.

LA foi a primeira cidade feita à medida do automóvel. Nem a cidade nem quem lá vive fazem sentido sem ele. Esta cidade sem centro, sem narrativas pré-traçadas, a primeira urbe pós-moderna, com o seu labirinto infinito de possibilidades, inacreditavelmente hostil ao forasteiro que nela ousa penetrar, que exige ser aceite ou rejeitada em bloco, é a mais incómoda de todas as que conheci. Ontem, voltou a mexer comigo.

17 milhões de habitantes, e nenhum interessado em Vincent, um mero dano colateral.

19.11.04



Manuel Amado.

No 95º aniversário de Peter Drucker



Diz-se às vezes que toda a história da filosofia ocidental não é mais do que uma sucessão de notas de pé de página aos escritos de Platão. Do mesmo modo, e com maior propriedade, poderíamos dizer que todo o corpo teórico da gestão desenvolvido ao longo dos últimos cinquenta anos não passa de uma adenda às ideias inspiradoras de Peter Drucker.

Cohn-Bendit



A polícia gaulista fez dele o símbolo de Maio de 68 porque, sendo alemão e judeu, era a prova viva de que a rebelião fora desencadeada por agitadores a soldo do estrangeiro.

Essa circunstância fortuita concedeu-lhe o imerecido mas duradouro estatuto de celebridade. Há 36 anos que vive dela.

Às tontices que ritualmente profere não é atribuida excessiva importância, exactamente do mesmo modo que o que dizem os jogadores de futebol ou as modelos não afecta significativamente o seu estatuto.

Mas é uma vergonha para o Parlamento Europeu que uma criatura desmiolada como ele se apresente a falar em nome de um grupo parlamentar.

A pergunta

A pergunta proposta para o referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu é disparatada, mas a sugestão de boicotá-lo por causa disso é absurda.

Ao fim e ao cabo, ninguém tem dúvidas de que se trata de votar a favor ou contra a chamada Constituição Europeia e, se dúvidas houver, elas serão completamente dissipadas daqui até ao dia da votação. Logo, a precisa formulação da pergunta é uma questão absolutamente secundária.

Deixem-se desses estúpidos formalismos à antiga portuguesa e comecem a discutir o que interessa.

18.11.04



Hans Hartung: Composição P1960 - 14, 1960.

Uma ideia genial

Bagão Félix foi assistido num hospital do Porto por causa de uma crise de hipertensão. Santana vai ser operado a uma hérnia. Sampaio padece das vias respiratórias.

Querem ver que a seguir Morais Sarmento aparece de muletas e José Luís Arnaut de braço ao peito?

Ninguém me tira da cabeça que isto é uma ideia dos assessores de imagem para ver se o povo tem pena deles. Nunca vi uma tentativa tão desesperada para melhorar os resultados das sondagens.

Preparando o sprint

À medida que os ciclistas fugitivos se aproximam da meta, vai diminuindo a cooperação entre eles, porque o objectivo principal deixa de ser ganhar tempo ao pelotão e passa a ser preparar o sprint.

É assim no ciclismo, e é assim na política, por razões que a teoria dos jogos explica.

É normal, por isso, que aumentem as querelas no seio da coligação, visto que, quando forem a votos, será cada um por si – a menos, claro, que decidissem desde já avançar coligados.

Mas o que verdadeiramente convém sublinhar, o que as birras de Portas revelam, é que, para PSD e PP, a meta já está à vista. Ou seja, que eles não esperam eleições dentro de dois anos, mas muito em breve.


Max Ernst: Euclides.

Onde está o poder

É bom recordar que estas trapalhadas que andam aí por causa da integração do negócio do gás natural na EDP começaram com o governo PS e, mais concretamente, com o inefável Pina Moura.

Assim que começou a haver um bocadinho de concorrência no sector da energia, Pina Moura congeminou um plano brilhante para juntar numa mesma empresa os derivados do petróleo, o gás natural e a electricidade e acabar outra vez com essa coisa chata de ter de lutar pelos clientes. Tudo com o pretexto espúrio de criar empresas nacionais com suficiente dimensão para poderem competir no plano internacional.

É neste tipo de políticas que reside, creio eu, o cerne da nossa desgraça económica. Os nossos grupos económicos são umas florzinhas de estufa que só se interessam por actividade protegidas da concorrência. Devemos ser o único país europeu onde o grande capital não tem qualquer envolvimento na produção de bens ou serviços transaccionáveis no mercado internacional.

Depois, como estes grupos absorvem o essencial dos recursos humanos, financeiros e materiais do país, a inovação é inexistente, as empresas não acrescentam valor e a produtividade estagna.

O Estado pelo seu lado, acha que a sua obrigação é arranjar negócios para estes grupos económicos, uma vez que eles não são capazes de se desenrrascar sozinhos. Por isso, é preciso privatizar mais negócios onde a concorrência seja escassa - como a saúde ou as águas, por exemplo. Não vejo, neste particular, grandes diferenças entre os governos de Cavaco, Guterres, Durão e Santana Lopes, excepto no facto de que , sendo esta lógica cada vez mais assumida, agora os grupos nomeiam directamente os ministros (ou primeiros-ministros) e tratam dos seus assuntos sem intermediários.

Admiram-se depois as pessoas que as pastas ministeriais sejam entregues a jovenzinhos recém-licenciados ou a pessoas cuja competência na área em questão é, no melhor dos casos, muito discutível. É claro que este é o sistema que convém aos negócios. Há método nesta loucura.

Como se não bastasse os ministros não perceberem nada dos assuntos e mudarem constantemente (Guterres teve 4 ministros diferentes com a pasta dos transportes, e esta maioria já conta 3), ainda por cima a teoria dominante, com grande receptividade nos media, é que o importante é decidir. Mas decidir o quê, se quem decide não entende sequer o que está em jogo? É assim que brincamos continuamente aos planos ferroviários, como se as opções em cima da mesa fossem uma mera questão de opinião. Não admira que, vistos de Espanha, pareçamos um país de tolos.

Eu não acredito que o Estado seja a encarnação mais ou menos hegeliana do bem colectivo, particularmente em Portugal, país onde os interesses sectoriais se aliam a grupos de funcionários para instrumentalizar a administração pública. Mas não sou tolo ao ponto de ignorar que as constantes catilinárias a favor de um Estado mínimo têm por objectivo principal remover os impedimentos à concretização dos grandes negócios.

O aparelho de Estado foi efectivamente desmantelado com método e competência (nem em tudo somos incapazes!) ao longo das duas últimas décadas. Hoje, os directores-gerais não contam para nada, porque são meros comissários políticos mal-pagos e desprestigiados. O Estado não tem, por isso, know-how próprio, até porque todos os gabinetes de estudos e planeamento foram desmantelados.

Quando é preciso estudar qualquer assunto, chama-se a McKinsey, de forma que, actualmente, o Estado português também não tem memória. Subcontratou-a, e já não se lembra onde a deixou. Mais recentemente, inventou-se um sistema ainda melhor: os estudos são agora feitos pelas próprias empresas que mais tarde executarão as obras.

De modo que, chegados a este ponto, o problema não é propriamente económico. É um problema político de poder, ou seja, de saber quem manda em quê e quem controla quem. Sem resolvê-lo, qualquer plano tecnológico, educacional ou outro é pura perda de tempo e dinheiro jogado à rua.

É por tuto isto que sou levado a concordar com o que tem afirmado a Maria José Morgado: o cerne dos problemas do país reside hoje na corrupção e no seu inevitável companheiro de cama, o crime organizado.


Max Ernst: A bicicleta graminácea, 1921.

A mulher certa no lugar certo ao lado do homem certo



George Bush deu quatro razões para incumbir Condi Rice de dirigir a diplomacia americana:

1. Fala uma língua estrangeira.
(Deve ser australiano, suponho.)

2. É uma emérita pianista, especializada em Brahms.
(O importante é que não toque blues. Mesmo assim, foi um erro não mencionar também um compositor fracês.)

3. É uma grande patinadora.
(E também pôs os patins ao seu antecessor.)

4. Pecebe imenso de futebol americano.
(Isto é o que os europeus vão apreciar mais.)

A minha participação no conflito israelo-árabe

Há uns doze anos, numa época em que trabalhava no Chiado, ao subir de manhã a Rua Garrett, reparei com surpresa que ao meu lado caminhava o Shimon Perez, então Ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel.

Devo ter olhado para ele com demasiada insistência, porque rapidamente dois seguranças, com auscultadores nos ouvidos e mãos nas armas escondidas dentro dos casacos, se interpuseram entre mim e ele.

Admirei-me que não tivessem percebido imediatamente que também eu sou judeu, mas, pensando melhor, nada de essencial distingue as feições de um árabe das de um judeu.

E assim terminou o meu envolvimento directo no conflito israelo-árabe. Desde esse dia, posso dizer que falo do tema com mais conhecimento de causa.

Injusto?

O leitor Marcus Pessoa acha que fui injusto para com Condoleeza Rice ao acusá-la, no meu post de ontem, de ter mentido à Comissão de Inquérito do 11 de Setembro. Pode ser que sim, mas não me parece.

Vejam o que escreveu ontem Brad de Long no seu blogue (link permanente aqui ao lado):


THE SENATE SHOULD NOT ADVISE AND CONSENT TO THE NOMINATION OF CONDI RICE TO BE SECRETARY OF STATE

Bob Somerby quotes from the August 6, 2001 Presidential Daily Briefing on intelligence:

Bush had been warned about possible hijacks: "We have not been able to corroborate some of the more sensational threat reporting, such as that from a [REDACTED] service in 1998 saying that bin Laden wanted to hijack a U.S. aircraft to gain the release of “Blind Sheik” Omar Abdel Rahman and other U.S. - held extremists. (10) Nevertheless, FBI information since that time indicates patterns of suspicious activity in this country consistent with preparations for hijackings or other types of attacks, including recent surveillance of federal buildings in New York..."

What Condi Rice told the 911 Commission about this PDB:

RICE: The fact is that this August 6th PDB was in response to the president’s questions about whether or not something might happen or something might be planned by al Qaeda inside the United States. He asked because all of the threat reporting, or the threat reporting that was actionable, was about the threats abroad, not about the United States.

This particular PDB had a long section on what bin Laden had wanted to do - speculative, much of it - in ’97, ’98, that he had in fact liked the results of the 1993 bombing. It had a number of discussions of - it had a discussion of whether or not they might use hijacking to try and free a prisoner who was being held in the United States, Ressam. It reported that the FBI had full field investigations underway. And we checked on the issue of whether or not there was something going on with surveillance of buildings, and we were told, I believe, that the issue was the courthouse in which this might take place.

Commissioner, this was not a warning. This was a historic memo - historical memo prepared by the agency because the president was asking questions about what we knew about the inside.

Is there anybody who believes that the Senate should advice and consent to the nomination of Condi Rice to be Secretary of State?

Em resumo, Condi cita incorrectamente o Briefing Presidencial. Diz que ele apenas se refere a um possível ataque à prisão onde se encontrava preso Abdel Rahman, quando, pelo contrário, ele diz que essa hipótese é fantasista, e que o que está em causa é a eventualidade de ataques contra edifícios federais em Nova Iorque.

Além disso, as conclusões do Relatório do 11 de Detembro contradizem directamente o depoimento de Condoleeza Rice, ou seja, estabelecem claramente que havia informação suficiente para fazer crer que algo semelhante aos ataques terroristas daquele dia estava de facto em preparação.

Logo, Condi é incompetente e mentirosa.

A geo-estratégia explicada às crianças

Um especialista europeu de geo-estratégia que vivesse no início do século XV poderia dizer qualquer coisa deste género:

A fragilidade da Europa acentua-se com as crescentes dissensões religiosas que, desafiando a autoridade papal, ameaçam dividir a cristandade ao meio, no preciso momento em que o império otomano se expande tanto no Norte de África como no Leste do continente, ameaçando apertá-lo como uma tenaz.

A Europa, incapaz de se unir quer política quer militarmente para fazer face a esse perigo, está também enfraquecida internamente pelas novas ideias humanistas que minam a confiança popular nos valores tradicionais e destroem a ética do trabalho. Hoje em dia, as pessoas só pensam em divertir-se. O Reino dos Céus deve ser imediatamente instaurado na Terra: eis o que reivindicam as revoltas camponesas que estalam um pouco por toda a parte.

Em vez de se concentrarem em desenvolver os recursos naturais do continente, um número crescente de europeus lança-se em aventuras marítimas isensatas, inspiradas pela busca do lucro fácil no comércio da pimenta, da canela, do ouro e dos escravos. Multidões de ambiciosos abandonam as suas terras, deixadas incultas, e partem para a outra ponta do mundo na esperança de fazerem fortuna pela pilhagem.

Entretanto, lá longe no Extremo Oriente, conta-se que o grande Império chinês, depois de ter conseguido estancar as invasões mongóis, entrou numa nova era de prosperidade, de tal forma que, pela primeira vez na sua história milenar, se sentiu encorajado a iniciar uma expansão marítima no Oceano Índico que levou já as suas gigantescas frotas até à Pérsia, à Arábia e à África Oriental. Em breve dobrarão o Cabo da Boa Esperança e, daí até à entrada no estuário do Tejo e à conquista sem resistência da Europa, irá apenas um passo.

Percebem agora porque é que eu não ligo nenhuma às elucubrações geo-estratégicas?

17.11.04



Max Ernst: O chapéu faz o homem, 1920.

A realidade está virando ficção

Arnoldo Jabor escreveu n'O Globo online de ontem (com os meus agradecimentos ao Gilson):

Não era preciso ser profeta para ver nosso triste presente nos filmes americanos dos anos 90. Em 1996, eu escrevi sobre dois filmes que me arrepiaram a espinha. Um deles era Forrest Gump e o outro, Independence Day, filme-catástrofe-ufanista que todos viram. Foram sucessos internacionais e também dois recados para o mundo de hoje.

Relendo hoje os dois textos, vejo que as condições objetivas para a desconstrução do mundo atual por Bush já estavam sendo cozinhadas no fogão das bruxas. Dava para ouvi-las como em Macbeth, cantando: «Something wicked this way cometh» («Coisas terríveis vêm por aí...»).

Na era Clinton a sabotagem dos republicanos já estava rolando. Não deram um minuto de sossego para o homem. A cada dia inventavam uma nova sacanagem.

Foram acusações imobiliárias em Whitewater, pecados em Little Rock, até que um belo dia caiu do céu a história da Monica Lewinksy dando chance ao promotor Kenneth Starr de liderar a campanha mais implacável que vi na vida, iniciando o golpe de direita que agora se consumou com a reeleição de Bush.

Estranhamente, tudo começou e acabou em sexo da boca de Monica até a questão do aborto e do casamento dos gays. Hoje já dá para ver que as administrações democratas, dos anos 60 até Clinton, foram fogos-fátuos; vemos que os democratas são tucanos passageiros, exceções fortuitas, pois a verdadeira América é
fisicamente republicana.

Mas, no cinema, está e estava inscrito o desejo psicótico desse país. Qual cinema do mundo que celebra permanentemente a violência, o sangue, a porrada e a inclemência? O cinema americano sempre foi um sintoma.

Quando eu vi Forrest Gump, senti (e escrevi) que alguém como Bush viria nos infernizar a vida. Estavam ali os sinais. Primeiro, me espantou o infinito sucesso de Forrest Gump. Foi das maiores bilheterias da História. Por quê? pensei. E escrevi que aquele filme transformava os últimos 30 anos da História americana num trem de banalidades, desmoralizando as lutas românticas que a América travou nos anos 60, 70. Forrest Gump condena os que criticaram o conformismo e o preconceito.

Tudo aquilo que contestou o sonho americano, tentando aperfeiçoá-lo, é ridicularizado para impor uma «sabedoria do idiota», superior a qualquer reflexão culta ou politicamente moderna.

O movimento negro foi transformado num grupo de loucos que espancam mulheres; os hippies, liderados por um Abbie Hoffman imbecil, parecem mendigos-palhaços; as liberdades sexuais conquistadas são viradas em sujas orgias pecaminosas e decadentes; os heróicos veteranos do Vietnã aleijados e abandonados foram retratados como detestáveis e mentirosos, numa prefiguração das calúnias fabricadas este ano contra Kerry pelos ex-soldados comprados por Bush, que, na época, vivia alcoolizado no Texas, fora da guerra pelas graças do pai. No filme, a namorada de Gump, Jenny, é punida por seus excessos, já que ela foi hippie, namorou um negro, contestou a guerra em Washington.
Por isso, morre castigada por um vírus misterioso, uma sugestão da Aids.

Escrevi na época: Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade conformista do futuro. É o idiota que venceu. Bush, em 2004 discursou em Yale para os alunos: Eu sou a prova de que um mau estudante pode ser presidente...!.

Gump foi lançado em 1995. Em 96 um outro filme prefigura (e não só,ele, mas outros como Godzilla, Deep Impact, Armaggedon,
tantos...) a América e o mundo de hoje: Independence Day. Também senti o arrepio do horror e escrevi sobre ele. Gump era o personagem; e Independence Day, o cenário e o contexto. Para quem não viu, Independence Day conta a história de Ets invadindo os Estados Unidos.

Com o fim da Guerra Fria, os americanos ficaram sem inimigos claros. No imaginário de Hollywood, os inimigos passaram a ser os rebeldes e psicopatas anti- sociais que Gump condena ou então, no caso de Independence, os ETs que eram visivelmente uma metáfora de invasores estrangeiros. Seriam quem? Os chicanos, os islâmicos, os excluídos, nós de Governador Valadares? Quem tinha ocupado o lugar dos comunistas?

Em plena propaganda da «globalização liberal», que ainda se considerava multilateral, já estava ali, visível a olho nu, o nacionalismo republicano, o protecionismo e a paranóia unilateral contra o resto do mundo.

E mais: o filme denotava um desejo inconsciente de autodestruição, um desejo de vitimização paranóica, de modo a legitimar revides e vingança.

Escrevo em 1996: «O filme atende aos desejos do Unabomber e dos
terroristas. (muito antes de Osama) No filme a América é destruída com fogo e sangue, espatifada com amor e ódio. No filme vemos um pavoroso delírio de ruína misturado com um patriotismo vingativo. Os marginais e os vagabundos (como os contestadores dos anos 60) vibravam na cena em que os ETs destroem a Casa Branca».

Quando vi Forrest Gump, tive um mal-estar de que algo importante estava mudando, quando vi Independence Day tive a visão esquisita de um futuro torto. Quando vi o Clinton acuado na TV, humilhado por ter comido a Monica, senti que a barra pesava nos Estados Unidos, depois, quando a Suprema Corte legitimou a fraude na Flórida, vi que o godzilla republicano já andava solto. Aí, o 11 de Setembro chegou e disparou tudo. Agora, sinto medo e depressão. A ficção virou realidade? Ou será o contrário?

Degradação



A substituição de Powell por Condoleeza é criticável antes e acima de tudo do ponto de vista estético. O mau gosto começa logo pelo nome. Embora a responsabilidade pertença aos pais, tenho que reconhecer que é merecido. Depois, Condi exibe todos os traços típicos da carreirista profissional. Finalmente, está hoje plenamente estabelecido que ela mentiu à Comissão de Investigação do 11 de Setembro ao negar que a administração tivesse alguma vez recebido informações sobre o propósito da Al-Qaeda de desviar aviões e atingir alvos nos EUA.

16.11.04



De Chirico: Heitor e Andrómaca, 1917.

Porque ladram os jornais

«Os chamados artigos de fundo são o coro das tragédias dos factos correntes. O exagero em todos os sentidos é essencial, tanto nos jornais como nos dramas: porque a questão principal reside em tirar o máximo partido de cada ocorrência. Por isso, todos os jornalistas são, em virtude da sua profissão, alarmistas: é a forma que têm de tornar as coisas interessantes. O que realmente fazem, no entanto, é assemelharem-se aos cachorros que, logo que vêem alguma coisa a mexer, desatam a ladrar. É necessário, por isso, não prestarmos grande atenção aos seus alarmes e apercebermo-nos, em geral, de que o jornal é uma lente de aumentar, e isso nos seus melhores casos; porque, muito frequentemente, não passa de um jogo de sombras na parede.»

Schopenhauer

Superstição

«Comprar livros seria uma boa coisa se pudéssemos comprar também o tempo para os ler; mas, por norma, a compra de livros é confundida com a apropriação do seu conteúdo.»

Schopenhauer

15.11.04



Giacomo Balla: Dinamismo de um cão pela trela, 1912.

O pois já conhece, mas pode ser que os outros gostem.

África



Quando se olha para a foto acima, tirada de um satélite sobrevoando as diversas regiões do globo à noite, o continente africano é praticamente invisível. África é hoje um continente inteiro deixado à margem do progresso económico e social.

Segundo Jagdish Bhagwati, um grande especialista contemporâneo em economia internacional que infelizmente não conhece o Professor João Miranda, o que está em causa quando hoje se discute África é, muito simplesmente, "a necessidade de reafirmarmos a nossa comum humanidade".

África tem 32 dos 48 países mais pobres do mundo. A esperança de vida reduziu-se de 50 para 46 anos desde 1990. Desde os anos 80, o produto per capita desceu 13% e duplicou o número de pessoas em situação de pobreza extrema.

Porém, há também boas notícias. Foram instaurados regimes semi-democráticos em muitos países. A sociedade civil fortaleceu-se. O sector privado da economia tornou-se mais importante. A cooperação inter-governamental melhorou.

Sustentar que não se deve fazer nada enquanto o nepotismo e a corrupção não forem completamente erradicados é um argumento insensato e cruel que condena a um sofrimento desnecessário milhões de seres humanos.

Bhagwati propôs no Financial Times do passado dia 5 de Julho um programa em cinco pontos para ajudar a tirar África da pobreza:

1. Perdoar incondicionalmente a dívida passada, dado que ela é exclusivamente suportada pelos mais pobres dos pobres do planeta.

2. Colocar condições à concessão de nova ajuda financeira, com vista a assegurar que o dinheiro será bem gasto. Não fixar objectivos de ajuda demasiado elevados, porque isso subverterá qualquer tentativa de controlo eficaz.

3. Ajudar também com dinheiro gasto fora de África tendo em vista o bem-estar dos africanos. O principal exemplo é o investimento em investigação orientada para a criação de novas vacinas contra as doenças que mais afligem o continente e que hipotecam as suas hipóteses de desenvolvimento.

4. Redução de barreiras alfandegárias nos dois sentidos, ou seja, eliminação da discriminação contra as importações de produtos africanos nos países desenvolvidos e abolição das absurdas restrições à importação em vigor em diversos países de África.

5. Lançamento de programas destinados a estimular a vitalidade do sector privado em africano, designadamente desenvolvendo instrumentos de crédito adaptados à suas necessidades.

14.11.04



Boccioni: Dinamismo de um jogador de futebol.

Este, aposto que vocês não conheciam. É espantoso o número de obras-primas que andam para aí escondidas e que, se não fosse a internet, praticamente ninguém veria.

A arte de não ler



«A arte de não ler é muito importante. Consiste em não sentir interesse algum por aquilo que está a atrair a atenção do público em dada altura. (...) Uma condição prévia para ler bons livros é não ler os maus: a nossa vida é curta.»

Schopenhauer

Mortos em combate

«Segundo Heródoto, Xerxes chorou diante do seu imenso exército, ao pensar que, de todos aqueles homens, nenhum restaria vivo dentro de cem anos; quem pode deixar de chorar diante do grosso catálogo da feira, ao pensar que, de todos aqueles livros, nem um estará vivo dentro de dez anos?»

Schopenhauer

13.11.04

Tudo o que desce tem que subir



«Os pensamentos obedecem à lei da gravidade, na medida em que se deslocam muito mais facilmente da cabeça para o papel que do papel para a cabeça, de modo que, neste último percurso, necessitam de toda a ajuda que puder ser-lhes concedida.»

Schopenhauer

Estilo

«O estilo é a fisionomia da mente. (...) A afectação estilística pode ser comparada a fazer caretas.»

Schopenhauer

Predestinação

«Deus criou a partir do nada uma raça fraca e propensa ao pecado, a fim de a condenar aos tormentos eternos.»

Schopenhauer

Agitação

«As pessoas necessitam de actividade exterior porque não têm actividade interior. Quando, pelo contrário, esta última existe, é provável que a primeira seja um aborrecimento muito incómodo, mesmo execrável, e um impedimento.»

Schopenhauer

O autêntico

«Tudo o que é primário, e, consequentemente, tudo o que é genuíno no Homem funciona, como as forças da natureza, inconscientemente. (...) Assim, apenas aquilo que é inato é genuíno e seguro. Se se quer conseguir alguma coisa nos negócios, na escrita, na pintura, em qualquer coisa, é preciso seguir as regras sem as conhecer

Schopenhauer


Francis Bacon: Estudo para retrato de John Edwards, 1986.

Existência animal



«Este sonho inquieto e confuso constitui a vida de milhões de homens. Eles sabem apenas o indispensável às suas carências presentes: não dedicam qualquer pensamento à coerência da sua existência, nem sequer à própria existência: até certo ponto, existem sem sequer se aperceberem disso.»

Schopenhauer

Desprezo e generosidade

«O desprezo genuíno é a convicção pura da insignificância de outrém; permite a indulgêmcia e a tolerância.»

Schopenhauer

Violência sobre os pequenos

«A arte consiste em expor a vida interior ao mais violento movimento com o mínimo dispêndio possível de vida exterior. (...) A tarefa do novelista não é narrar grandes acontecimentos, mas tornar interessantes os pequenos.»

Schopenhauer

O fantasma da Ópera

«A grande ópera não é verdadeiramente um produto do puro sentido artístico, é antes o conceito um tanto bárbaro de aumentar o prazer estético acumulando os seus meios, através da produção simultânea de sensações muito diversas, e fortalecendo o efeito através do aumento das massas e forças que o produzem (...) Tudo isto a distrai [à mente] e a confunde, e a sua atenção diverge, de modo que fica muito pouco receptiva à sagrada, misteriosa e íntima linguagem da música. (...) Rigorosamente, poder-se-ía chamar à ópera uma invenção não musical para mentes não musicais.»

Schopenhauer

Como pôr ovos

«Deposita os teus ovos onde sabes que eles um dia encontrarão vida e sustento, e morre satisfeito.»

Schopenhauer

Visões insones

Acabo de ter um pesadelo assim:

1. Os americanos forçam a realização de eleições no meio do caos iraquiano, com ataques bombistas sobre candidatos e eleitores e roubos de urnas. Os resultados são rejeitados por todos os que não beneficiarem deles.

2. Na sequência dessas eleições, a situação militar agrava-se, com várias guerras civis cruzadas e as tropas ocupantes no meio.

3. Como os EUA não têm dinheiro para suportar a cotinuação do esforço militar, as tropas americanas retiram-se do Iraque no prazo máximo de três anos, deixando atrás de si uma ditadura militar armada até aos dentes, semelhante à de Saddam mas aliada do ocidente.

O farmacêutico desaparafusado

Este tipo passou-se completamente. Aproveitem enquanto ele não recupera, porque não é todos os dias que a gente pode rir-se assim.

12.11.04



Os nus de Lempicka são pagãos. Os de Lucian Freud são cristãos: ele aceita os corpos das pessoas como eles são, e revela a sua humanidade através das suas imperfeições. Até a fealdade extrema merece o perdão.


Os nus de Tamara de Lempicka são ofensivos, já não digo só para as pessoas feias, mas até para as pessoas normais. Há aqui uma sugestão de que, se os nosso corpos não corresponderem minimamente a esse ideal platónico, de algum modo não seremos propriamente humanos.

Epitáfio

Lamento muito, mas não tenho nada de bom a dizer sobre Yasser Arafat.

É possível que ele fique na história como o verdadeiro fundador da nação palestiniana, mas a história está cheia de pais de pátrias - a começar por Afonso Henriques - que não se recomendam.

Durante muitos e muitos anos Arafat assumiu abertamente as teses do terrorismo e foi responsável por crimes hediondos, entre os quais o assalto à aldeia olímpica. Mais tarde, quando teve a oportunidade de iniciar a caminhada para a construção de um estado palestiniano, preferiu locupletar-se com o dinheiro que deveria ter servido para criar escolas e hospitais, abrindo as portas à ocupação do terreno pelo Hamas e pela Jihad Islâmica.

Bem sei que é fácil pregar moral quando se está de fora de uma tragédia da escala daquela em que Arafat viveu a maior parte da sua vida. Mas exemplos como o de Nelson Mandela - esse, sim, um herói autêntico - provam que não é necessário que as coisas sejam assim.

Desde 1948, a grande desgraça dos palestinianos têm sido os dirigentes árabes em geral, e os seus próprios em particular.

Escárnio e mal-dizer



Este retrato do Eduardo Prado Coelho é assassino, porque identifica com precisão e minúcia os tiques da escrita do personagem.

Quem assim escreve, retomando uma nobre mas adormecida tradição da nossa literatura, decerto não é tolo.


Lucian Freud: Duplo retrato, 1985-86.

10.11.04

Em breve, num bairro perto de si?



O assassinato de Theo Van Gogh significa que, de facto, após um intervalo de séculos, voltou a haver censura na Holanda, e do tipo mais sinistro que é possível imaginar-se.

A partir de agora, ninguém mais poderá expressar-se em total liberdade.

Curiosamente, noto que muitas pessoas minhas conhecidas ignoram o que se passou. Está tudo a dormir?

Que tal passar o filme na televisão portuguesa?

É só para rir...



Vêem porque é que o Iowa esteve tremido?


6.11.04



Lucian Freud: Rapariga com um cão, 1951-2.

No surrender

Mais um notável e tempestivo artigo de opinião de Paul Krugman no New York Times.

Sobre um post neo-marialva

Se as razões da vitória de Bush são as que ele diz, McGuffin deveria tentar responder a esta pergunta: porque ganhou Bush no Dakota do Norte e perdeu em Nova Iorque?

Ou seja, porque não tem ele o apoio maioritário daqueles que efectivamente estiveram e estão sob ameaça terrorista, mas sim o dos que só convivem e conviverão com esse fenómeno através da televisão?

E fico-me por aqui.

5.11.04

Relativismo moral?

No seu magnífico artigo de hoje no Público, Bénard da Costa cita a dada altura o Livro de Daniel, onde o Senhor Iavé diz a Ezequiel:

«Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé.»

Não sei se Iavé terá mesmo dito isto textualmente a Ezequiel. Mas, tenha ou não dito, estou em crer que, há dois mil anos, estes preceitos seriam aceites sem hesitação por qualquer homem de bem.

A maioria deles ainda hoje farão a unanimidade - dar de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, não oprimir, desviar a mão do mal, etc. - mesmo que a sua aplicação prática deixe muito a desejar. A própria ideia de «não conspurcar a mulher do próximo» parece aceitável, pelo menos se tomarmos à letra a palavra «conspurcar».

Também tendemos a concordar com a exortação para «não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel», embora a aplicação do espírito autêntico do mandamento requeira alguma actualização.

Outros, porém, parecem-nos algo mais estranhos, como essa ideia de «não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza». Se isso significa o que eu penso que significa, acho mais uma questão de gosto do que de moral, seja ela pública ou privada.

Mas não cobrar juros? E, acima de tudo, não comer no alto das montanhas, essa actividade eminentemente inocente, se é que estamos a pensar em comer a mesma coisa? Valha-nos Deus! Essa não lembrava ao Buttiglione!

Os muçulmanos (ou, pelo menos, muitos deles) tendem a aceitar à letra estas regras, resultando daí sarilhos monumentais. Pelo contrário, cristãos e judeus (ou, pelo menos, a grande maioria deles) preocupam-se mais com o espírito do que com a letra da mensagem de Iavé. Aceitam que há um núcleo duro de preceitos éticos comuns a todas as épocas e a todas as culturas, mas também que, fora desse núcleo, há margem para alguma fantasia moral não essencial explicável pelas idiossincrasias do tempo e do lugar.

Já Xenofonte chamava a atenção para o facto de que os deuses Etíopes tinham o nariz achatado e a pele negra, ao passo que os Trácios exibiam olhos verdes e cavalgavam cavalos de fogo. Mas pouco nos afecta que eles pintem os seus deuses com os traços que quiserem, desde que todos ensinem os caminhos da rectidão. Esta tolerância para com os caprichos das divindades aconselha-nos inclusivamente a não dar demasiada importância a embirrações irracionais, como essa de nos proibirem os piqueniques no alto das montanhas, agora que há por todo o lado caixotes para depositar o lixo.

O relativismo moral é insustentável, mas o absolutismo moral é absurdo.

Nem só de política vive o homem



Tamara de Lempicka: As duas amigas.

Bush country vs. Kerry country



O mapa eleitoral que temos visto nos jornais sugere uma vitória esmagadora dos republicanos.

Olhando para este mapa - onde o tamanho de cada estado varia em função da sua população, e não da sua área geográfica - compreendemos que não foi assim.

O cerco das cidades pelos campos



No primeiro mapa, os resultados das eleições são desagregados por condado (estão coloridos a cinzento os condados cujos resultados não estão ainda disponíveis). O voto maioritário democrata não se restringe a alguns estados costeiros do leste e do oeste. Na verdade, os democratas ganharam em quase todos os grandes centros urbanos - incluindo os do Texas e da Florida.

O segundo mapa ajuda a ler o primeiro, pois mostra a densidade populacional de cada condado, com os mais povoados a verde escuro e os menos povoados a verde claro.

A América das Luzes



Na véspera das eleições, os americanos que votaram Kerry acenderam uma vela. Uma fotografia nocturna de satélite permite ver onde eles estavam.

4.11.04



Tamara de Lempicka: Mulheres no banho, 1929.

Há um abismo entre os nus de Lempicka e os de Freud. Por isso é tão interessante colocá-los lado a lado. Em Lempicka, os nús sáo completamente idealizados, só lhe interessa o que aproxima as figuras humanas, apresentadas em enquadramentos modernos, de um protótipo clássico greco-romano. Freud, pelo seu lado, conduz uma exploração dolorosa daquilo que, precisamente, distingue os corpos reais das suas visões estilizadas. Surpreendentemente, da contemplação dos pequenos e grandes defeitos e ridículos destes corpos demasiado humanos emerge um outro tipo de beleza, a que, para recorrer a um lugar comum, chamaríamos convulsiva. O monstruoso como ideal de beleza tem uma longa tradição na arte ocidental.

Pensem um bocadinho

Por favor, olhem mais uma vez para o modo como tem evoluido o mapa eleitoral americano ao longo das últimas décadas.

Já olharam? O que vemos de forma evidente é uma evolução gradual e progressiva, mas inelutável e claríssima, que cavou um fosso entre, por um lado, os grandes centros urbanos e, por outro, os vastos estados rurais. Só faltava o New Hampshire e o Novo México mudarem de campo, como agora aconteceu, para as coisas ganharem a sua actual nitidez.

Essa brecha decorre, não tenhamos dúvidas, de crenças e valores antagónicos que opoem entre si as duas américas.

A oposição entre mundo urbano e mundo rural existe em todos os países desenvolvidos. O estranho é que, nos EUA, o mundo rural consiga impor de forma tão absoluta a sua vontade ao mundo urbano.

Será possível que as populações urbanas, das quais depende essencialmente o progresso e o bem-estar do país, se resignem a esta situação, tanto mais que ela parece não ter remédio? Alguns estudiosos norte-americanos sustentam que a evolução demográfica se encarregará de pôr termo, a breve trecho, à supremacia da América profunda do Mid-West e do Bible Belt.

Talvez. Mas, entretanto, temos agora, dentro do mesmo país, três vastas regiões geograficamente contíguas e com opções políticas, ideológicas, culturais e civilizacionais completamente distintas: a Costa Oeste, o Nordeste, e o Resto.

Os EUA tiveram no passado não muito longínquo uma guerra de secessão, sem esquecer que o Texas já declarou uma vez a independência. Mais uma vez, é hoje evidente a existência de forças centrífugas no seio da União.

Eis um cenário especulativo interessante de ficção política: estará a América a desagregar-se ao mesmo tempo que a Europa se une?

Eu diria mais

Robert Kagan popularizou a infeliz expressão: «Os americanos são de Marte, os europeus são de Vénus», uma maneira socialmente aceitável de um académico insinuar que os americanos os têm no sítio, ao passo que os europeus não passam de um bando de efeminados assustadiços.

Timothy Garton Ash, citado no O País Relativo, acha mais correcto afirmar-se que os Republicanos são de Marte, ao passo que os Democratas são de Vénus, notando de passagem que há mais semelhanças entre Democratas e europeus do que entre Democratas e Republicanos.

Olhando para o mapa eleitoral americano, eu diria antes que os labregos são de Marte e que os alfabetizados são de Vénus. Também temos muitos labregos cá na Europa (alguns até andaram recentemente envolvidos em guerras civis sanguinárias), só que ultimamente (lagarto, lagarto!) temos conseguidos mantê-los afastados do poder num bom número de países.


Lucian Freud: Reflection (Self-portrait), 1985.

Procura-se governador sulista incompetente

A análise mais original sobre as eleições americanas que até agora li, encontrei-a no blogue de Brad de Long. Ei-la:

A Different System Needed for Picking Presidents

In 1972, we reelected an incumbent. In 1976, we elected an unknown southern governor who had not spent a day in Washington D.C. and had no national political record. In 1980, we elected an unknown governor--a southerner, if Orange County is "southern"--who had not spent a day in Washington D.C. and had no national political record. In 1984 we reelected an incumbent president. In 1988 we elected an incumbent vice president. In 1992 we elected an unknown southern governor who had not spent a day in Washington D.C. and had no national political record. In 1996 we reelected an incumbent. In 2000 we elected an unknown southern governor had not spent a day in Washington D.C. and had no national political record.

The pattern is clear: when there isn't an unknown southern governor running, an incumbent president can win reelection or an incumbent vice president can win election; but the unknown southern governor without a national political record wins the presidency—always.

Why? Because he is a governor, he can raise money. Because he is unknown, he has no enemies in Washington who inform the press corps of weaknesses. Because he has no record, nobody has an incentive to try to block him. Because he is southern, the south tends to vote for him.

The problem is that being an unknown southern governor has next to nothing to do with being an effective president. Of the unknown southern governors who have run since 1972, we've been lucky once--Bill Clinton was a good president. We've been unlucky three times: Carter, Reagan, and George W. Bush were, none of them, up to the job.

You can go further back in the past. Nixon when he ran in 1968 had next to no national political reputation. He hadn't been in government for eight years. When he was vice president he was a cipher. His only national political experience actually doing anything had come in a few short years as representative and senator trying to exploit the communists-in-government issue. Johnson was an incumbent. Kennedy was another cipher: next to no record in the senate, and his principle qualification was a rich father who knew how to run a political machine. Eisenhower was another cipher without a national political record--although his management of alliance politics in World War II is most impressive. Truman was an incumbent. Roosevelt had only a very small national political record--two years as assistant secretary of the Navy and four years of being governor of New York.

You have to go back to Herbert Hoover to find someone who (a) is not an incumbent and who (b) has a national political and governmental reputation winning the presidency.

This is not a good way to do things, people.

3.11.04



Lucian Freud: Naked portrait with reflection, 1980.

The day after

John Kerry não é um personagem fascinante. Tão pouco é senhor de uma presença imponente.

É um homem cerebral, algo tímido, que não se sente à vontade em comícios e sessões de abraços e apertos de mãos. Habituou-se a cultivar um tom distante e patrício que, naturalmente, não gera empatia com o eleitor comum.

Mas fez uma campanha séria e corajosa, sem sombra de demagogia, em condições singularmente adversas. Enfrentou sem receio os preconceitos quotidianamente difundidos pelos media, ousando inclusivamente tomar posição em relação a questões tão sensíveis como a pena de morte, a posse de armas, o aborto ou o casamento de homossexuais.

Perdeu. Dadas as circunstâncias, acredito que dificilmente poderia ter sido de outro modo, apesar do que agora se diz terem sido os erros da sua campanha.

Mas é possível que, com a sua honrosa votação, e também com a intensa mobilização dos seus apoiantes, tenha conseguido estancar o avanço da vaga conservadora, cuja motivação extremista está hoje à vista de todos. A próxima administração Bush pode tentar ignorar meia América e prosseguir o caminho da anterior, dentro e fora do país, mas sabe agora que terá que contar com uma resistência determinada intra-muros.

Ganhar não é tudo, às vezes é quase nada. Há vitórias insignificantes, tal como há derrotas que intranquilizam os vencedores.


Tamara de Lempicka: A bela Rafaela.

Estes liberais...

Escreve a Joana:

«A democracia e a liberdade deixaram de serem factores de progresso e de fortalecimento da sociedade, para se estarem a tornar, paradoxalmente, factores de estagnação e de degeneração sociais.»

Esqueçam os erros de português e atentem bem na substância da sentença. E, para não julgarem que a frase foi indevidamente isolada do seu contexto, vão e apreciem com os vossos próprios olhos.

A paixão de algumas pessoas pela democracia liberal foi, como certos amores de Verão, breve e fugidia. Eis que rumam já a novas paragens, onde, livres de convenções embaraçosas, sem dúvida verão satisfeitos os seus anseios de «progresso e fortalecimento da sociedade».

Boa viagem. Cá estaremos para ver.

(Parecendo que não, isto tem muito que ver com o meu post anterior.)

Coisa estranha

Parece que, das pessoas que vivem obcecadas pelo temor de um novo ataque terrorista, 85% votaram Bush e apenas 15% Kerry.

Olhando para a geografia eleitoral da votação, infere-se daí que os aldeões do Dakota do Norte estão mais preocupados com a segurança dos arranha-céus das suas vilórias do que os cidadãos de Nova Iorque, Filadélfia, Chicago, Los Angeles, San Francisco ou Seattle.

Tendo em conta que, se bem me lembro, os ataques do 11 de Setembro tiveram lugar em Nova Iorque e Washington, eu diria que isto não parece um fenómeno muito racional.

Não acham?

Um mal nunca vem só

À beira da desgraça que vai para os lados das Antas, a vitória de Bush não é nada. Se não fosse a falência iminente da minha recém criada empresas de sondagens por telepatia, totalmente desacreditada pelo resultado desta noite, era mesmo para o lado que eu dormia melhor.

1.11.04



Lucian Freud: Grande interior W. 11, segundo Watteau, 1981-83.

Da maldade na literatura

Se o escritor é uma espécie de Deus para as suas personagens, então deve assemelhar-se ao Deus autoritário, rigoroso, vingativo e cruel do Velho Testamento.

Os escritores que, com a sua compreensão, com a sua piedade, com o seu perdão, procuram emular o Deus do Novo Testamento, produzem inevitavelmente obras mais fracas, literatura de bons sentimentos mas frouxa, ao jeito do Júlio Dinis.

O Deus dos exércitos, que castiga até à sexta geração, pelo contrário, escalpeliza com rigor as fraquezas do género humano, troça das ilusões e das ambições das suas personagens, expõe-nas aos maiores tormentos, fá-las penar impiedosamente ao longo de centenas de páginas e, como se isso não bastasse, regozija-se com finais infelizes.

Mas a crueldade rende-lhe às vezes um Prémio Nobel ou, mais raramente, a imortalidade no reino da literatura. Quem não tem estômago para isto deve abster-se.

Efeitos de perspectiva

Pode-se apreciar a arte com base em critérios políticos, tal como se pode julgar a política segundo critérios estéticos.

Não vejo mal em qualquer dessas perspectivas - pelo contrário, considero-as enriquecedoras -, desde que não se pretendam exclusivas.

Diga-me doutor...

No escritório, na universidade, na família, entre amigos - sempre e em toda a parte, começo a sentir-me mal por ser a única pessoa que, ao que parece, ainda não leu o Código Da Vinci.

Diga-me doutor: é grave?