25.11.05

25 de Novembro de 1975

Faz hoje trinta anos, saí às seis da tarde do escritório na 5 de Outubro. Sabia-se das movimentações em curso, não se fazia ideia do que aquilo iria dar. As informações eram escassas. (Será preciso lembrar que não havia telemóveis?) Dirigi-me à Baixa. Chegado à Rotunda, fiz um desvio para o Rato. Encontrei lá o César, oficial miliciano do RALIS. Nessa época, o César costumava passear-se por Lisboa de Chaimite, mas nesse dia isso não era conveniente. Informou-me com ar misterioso que tínhamos uma missão importante a cumprir. O meu Fiat 127 ficou logo ali requisitado. Disse-me para esperar, e voltou uns minutos depois com três padeiros jovens que eu nunca vira antes. Metemo-nos no Fiat e rumámos ao quartel do Lumiar. Chegados lá, o César mandou-me estacionar perto do portão. Explicou-me que ia falar com o sub-comandante, no dizer dele um democrata, e deixou-nos ali, a mim e aos três padeiros. Tentei meter conversa, mas eles, nitidamente assustados, permaneceram calados como ratos. Passado algum tempo, começaram a chegar outros carros, bastante melhores do que o meu, que estacionaram à frente e atrás dele. O César voltava de vez em quando no seu passo gingão e, com uma grave pose conspirativa apropriada à gravidade do momento, garantia-nos que estava tudo a correr bem. “Tudo, o quê?” Quem perguntava era eu, aos padeiros tanto se lhes dava. O César sorriu. Tirou uma fumaça e fez-nos a terrível revelação: “Vai haver distribuição de armas. Estamos aqui para isso.” Nem precisava de se virar no assento para desfrutar do pânico dos padeiros. Eu já vivera uma cena parecida no 11 de Março, dessa vez com o Freire Antunes. Perguntei: “Também é para isso que estão aqui estes carros todos?” “Quais carros?” O César, demasiado concentrado no papel que estava a desempenhar, não tinha reparado. Fiz-lhe sinal com a cabeça. Por essa altura, alguns dos “outros” também já estranhavam a nossa presença. Entre os sujeitos que andavam de um lado para o outro no passeio em frente do quartel reconhecemos dirigentes do PRP. Eles traziam nos carros armas de repetição bem à vista. “Estamos fodidos! Estes gajos não podem ver-nos!” O César saiu do carro. A noite estava fria. A nossa respiração dentro do carro embaciou os vidros, de modo que a malta que estava cá fora não conseguia ver-nos. Não abrimos as janelas sequer para sair o fumo. Assim, estávamos a salvo. Passado algum tempo, deu-se um acontecimento inesperado: um a um, os outros carros arrancaram e foram-se embora. Ao cabo de um quarto de hora, estávamos outra vez sozinhos junto ao quartel. Quanto ao César, nem vê-lo. Esperámos. Finalmente ele lá voltou. Explicou: “Isto hoje já não dá nada. Foi decretado o recolher obrigatório a partir das dez da noite.” Percebi então o que se passara. O pessoal do PRP tivera conhecimento do recolher e optara por obedecer imediatamente. As coisas não estavam a correr bem para eles. Entretanto, já passava das dez. Estávamos em infracção. Que fazer? Adiante, que um revolucionário nunca se atrapalha. Seguimos, pois, para o centro da cidade. Logo à entrada do Campo Grande, porém, deparámo-nos com uma barreira militar que nos apontou as armas e mandou parar. Saí do carro e fui falar com o comandante do grupo: “Soube agora mesmo do recolher e vou para a minha casa, que é ali adiante.” Mentira: a minha casa era perto, mas para trás. Deram-nos autorização para seguir. Seguimos pela cidade fora tranquilamente, em pleno recolher obrigatório. Fui despejar o César e devolver os três simpáticos padeiros. Não me recordo se foram pegar ao trabalho. O país, com revolução ou sem ela, precisava de tomar o pequeno almoço no dia seguinte, que era uma 4ª feira e, portanto, dia de trabalho. Passei o resto da noite à procura de amigos. Recolhi uns aqui e outros acolá. Fui comprar frangos assados e pão quente. Ficámos a noite toda de atalaia, mas de barriga reconfortada. Disse sempre às patrulhas militares que encontrei que morava já ali adiante, e sempre me deixaram passar. Boa gente, como se vê. No dia seguinte soubemos que, como esperávamos, tinham vencido as tropas leais. Eanes apareceu pela primeira vez. Alguma coisa acabara, alguma coisa começara.

Sem comentários: