15.10.06

Salazar hoje

Salazar foi, para a minha geração, uma canga que trouxemos ao pescoço numa fase crucial das nossas vidas. Visto à distância, é possível que o regime que ele protagonizou venha paradoxalmente a ser recordado como uma etapa decisiva do processo de modernização do país.

Tal como os actuais admiradores do Marquês de Pombal se deixam impressionar mais pela sua vigorosa liderança do que pelas barbararidades que cometeu, os vindouros preferirão talvez valorizar mais o crescimento continuado do PIB per capita acima dos 6% nos anos 60 do século XX do que o Tarrafal, o assassinato de Delgado, a guerra colonial e a emigração em massa.

Estamos já tão longe do Portugal de Salazar que nem mesmo os que mais sofreram às suas mãos conseguem continuar a sentir por ele o mesmo rancor. A cada dia que passa ele torna-se mais indiferente para a esmagadora maioria dos portugueses habituados (ou acomodados) a viverem em democracia.

O único problema é que a exaltação da memória do ditador continua a mobilizar aquela escassa minoria de revanchistas que desde 1974 se sentem mal no seu próprio país. E não duvidemos que, enquanto os cidadãos comuns que vão participar no passatempo da RTP repartirão os seus votos entre Eusébio, Camões, o Infante D. Henrique e outros previsíveis e consensuais ícones da pátria , os nostálgicos do antigo regime concentrarão os seus no filho mais ilustre de Santa Comba.

O alarido levantada em torno da não inclusão de Salazar na lista dos "Grandes Portugueses" deve levar-nos a meditar na relação (ou na ausência dela) que os portugueses actualmente mantêm com a sua história. Pois dá-se o caso de que um dos problemas não resolvidos da globalização é que, tirando os americanos e, em manor escala, os ingleses e os franceses, os restantes povos perderam quase por inteiro, por via do domínio esmagador dos produtos culturais originários dos EUA, o direito à memória histórica.

O que teve como consequência que as novas gerações sabem ou julgam saber muito sobre Henrique VIII, Luís XIV, Napoleão, Churchill ou Nixon, mas nada ou quase sobre Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, Damião de Góis, o Abade Correia da Serra ou João Domingos Bomtempo só para mencionar alguns daqueles portugueses cujas vidas tiveram impacto além fronteiras.

Daí também a dificuldade que hoje sentimos de encontrar na história nacional para Oliveira de Salazar um lugar apropriado e uma valorização equilibrada, não motivados nem por anacrónicos resentimentos nem por facciosas idolatrias.

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