28.10.06

Um escritor



"Quem foi que teve a ideia de sintonizar este programa?" No écrã, António Lobo Antunes conta a Judite de Sousa como o enfadam as viagens que lhe marca o seu editor: México, Colômbia, Equador... Uns meses depois mais outro circuito... E ele, aborrecido de morte, cheio de saudades do seu querido Portugal. Só aguenta a tortura porque exige que lhe reservem sempre tempo só para si, desabafa com ar blasé.

As mãos de António deslocam-se continuamente sobre o rosto, ora tapando a boca, ora ocultando os olhos. Penso que talvez se sentisse melhor se enfiasse uma burka. Mas não, de forma nenhuma, a burka concentraria as atenções nos olhos, e é sobretudo o olhar que ele quer desviar.

Seguem-se as rituais loas ao avô, aos pais, aos irmãos, não fossemos nós esquecer a venerável linhagem em que se filia. Em família, porém, nunca falam dos seus livros. De que falam então? - inquire a embaraçada e aflita Judite. Boa pergunta: não se vê, de facto, que outro assunto poderá interessar-lhe.

Ao longo de toda a entrevista António fala exclusivamente de si mesmo. Quase não lhe sobra uma palavra para qualquer outro tema. Tece elogios rasgados a alguns mortos - José Cardoso Pires e Melo Antunes, por exemplo -, mas mantém sempre grande distância em relação aos vivos, sejam eles quem forem.

Mede com calculada cautela todas as palavras. É inútil esperar dele uma réstia de espontaneidade, um rasgo inesperado, uma centelha de espírito. Qual burocrata da palavra, recolhe frases feitas da sua memória, procurando aplicá-las o melhor possível àquela circunstância.

Uma breve alusão à sua participação numa campanha eleitoral ao lado do PCP em 1982 denuncia-lhe a completa falta de carácter.

António tem todos os defeitos para ser um grande escritor. Por que não o é, então? Se calhar, faltam-lhe as qualidades.

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