22.2.13

Direito à revolta e liberdade de expressão



No ano lectivo de 1969-70 foi a academia portuguesa varrida por uma vaga de contestação que ainda não vi relatada em qualquer livro de história sobre a época. Consistia o movimento na iniciativa que muitos estudantes de várias escolas tomaram de questionarem de viva voz o que os mestres lhes ensinavam, designadamente no que tocava aos pressupostos ideológicos e políticos subjacentes a esse saber.

Descontando a surpresa ou mesmo o choque de que uma coisa assim pudesse ter lugar num país que, para todos os efeitos práticos, vivia em ditadura, o debate processou-se durante algum tempo num clima notavelmente civilizado, apenas ameaçado pelas pressões que o governo exercia sobre as direcções académicas para que pusessem cobro à subversão.

Foi então que, na Faculdade de Direito de Lisboa, alguém, que eu aliás muito bem conhecia dos bancos do Liceu, introduziu um estilo novo e mais excitante de contestação consistente em insultar os mestres e arremessar-lhes tomates e ovos quando o debate não evoluía a seu contento. Como talvez fosse de esperar naquele contexto, o estilo pegou, alastrou a outras escolas e motivou uma escalada de violência que não mais recuou até ao 25 de Abril.

Consumada a revolução, os debates em assembleias populares começaram por decorrer num geral ambiente de fraternidade e respeito pelas opiniões alheias, que todavia não durou mais que escassas semanas. Logo que se tratou de eleger direcções de sindicatos, de comissões de trabalhadores ou de comissões de moradores, os comunistas e alguns grupos esquerdistas recorreram prontamente ao método de intimidação dos opositores, muitas vezes coadjuvados por membros do MFA que acorriam às assembleias para impor respeito.

Os acontecimentos desta semana no ISCTE trouxeram-me de imediato à memória essas recordações ao mesmo tempo que me confirmam na ideia de que comunistas e esquerdistas pouco ou nada evoluíram desde então.

Como tentei mostrar, aprendi muito novo que a afirmação do nosso direito à liberdade de expressão facilmente entra em confronto com a liberdade de expressão dos outros. Ao contrário do que à primeira vista se poderia pensar, a liberdade de expressão é um bem rival, na medida em que os antagonistas entre si disputam o tempo e o espaço de que dispõem para se manifestarem perante uma dada audiência recorrendo a um determinado medium.

É evidente que Relvas beneficia da vantagem de poder exprimir-se recorrendo a meios muito mais poderosos do que aqueles que estão ao alcance do comum cidadão. Vai daí, os anónimos humilhados e ofendidos sentem-se no direito de silenciar o ministro numa situação particular sob o pretexto de que ele tem outras oportunidades para falar.

Mas a liberdade de expressão não pode admitir tais entorses. Relvas não tem apenas um direito genérico e abstracto a exprimir-se, ele tem o direito a exprimir-se onde e quando entender, especialmente quando foi expressamente convidado a fazê-lo. De outro modo, um direito genérico poderia ser sempre negado em condições particulares – estratégia que, de resto, sempre foi a aplicada nos países comunistas.

Entendo a revolta de quem é diariamente espezinhado da forma mais cruel por este governo, carecendo de meios para se defender, e entendo também que é dessa violência objectiva que por fim emerge a violência subjectiva de grupos mais ou menos organizados. Em última análise, a responsabilidade do que se está a passar é, pois, de Passos, Relvas e Gaspar, ou seja, da troika interna.

Mas isso não me fará aplaudir a utilização da violência, pelo menos enquanto houver formas civilizadas de manifestar por muitos e vários meios a nossa oposição a este revoltante estado de coisas.

Tudo poderia ser aceitável nas manifestações das últimas semanas – as manifestações, os discursos inflamados, as canções, mesmo os insultos, por descabidos que sejam – tudo, menos as intimidações físicas e a negação do direito à palavra dos adversários. No que toca aos insultos, a única coisa que me desagrada é que sejam tantas vezes absurdos (“fascistas!” “bandidos!” “ladrões”) quando tantos bem mais contundentes seriam na ocasião apropriados.

Se os excessos não forem atalhados a tempo, temo bem que a resistência popular vá por mau caminho.

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